Estruturas rígidas tencionam estruturas simbólicas

 

Como, frente ao momento crítico que estamos vivendo, as artes visuais e suas instituições podem participar e ampliar o debate público? Como, desde o campo estético, efetivamente contribuir para a discussão política? Como, considerando a autonomia e a especificidade da arte, pensar estratégias discursivas e plástico-visuais capazes de confrontar os conteúdos e fatos amplamente comercializados nos mercados da pós-verdade e do fakenews? Como ultrapassar o nicho de mercado “arte política”, valorizado no colecionismo privado, amplamente explorado por galerias, instituições culturais e muitas vezes esvaziados nas reflexões de críticos e curadores? Como lidar com os desafios da representação política em um mundo marcado pela excessiva circulação, banalização e consumo de imagens? Como tratar do fato social cotidiano e vulgar sem abrir mão da autonomia e especificidade do campo?

Esses são alguns dos dilemas enfrentados por inúmeras obras presentes na segunda edição da Trienal de Artes. Dentre as quais destacamos um conjunto – desenvolvido por artistas de diferentes gerações a partir dos anos 2000 – que, despido do caráter panfletário e das amarras programáticas-ideológicas, dos apelos midiáticos de entretenimento e das estratégias espetaculares do choque e da denúncia, suscitam, desde uma forma de conhecimento específico e a partir de suas particularidades, reflexões e diálogos entre arte, arquitetura e política.

Sem cair nas armadilhas da simples negação ou da positividade, o artista cubano Diango Hernández articula de maneira complexa as improváveis relações que o design, na falta de um mercado de consumo, estabelece com a república socialista de Cuba e seus cidadãos. A precariedade material, tecnológica e econômica que assola o país e sua população, levando-os a lançar mão de toda sorte de improvisos, arranjos, reaproveitamento e engenhocas, é sintetizada em obras produzidas com base em uma estética da gambiarra. Caso de Leg me, Chair me, Love me (2010), uma cadeira que por meio de uma engenhoca criada pelo artista, é impossibilitada de manter, simultaneamente, suas qualidades formais e propriedades funcionais, oscilando entre um mero objeto escultórico – quando perde momentaneamente seu caráter funcional – e um mero objeto funcional – no qual o remendo e a carência comprometem a excelência formal de um objeto de design. No entanto, como nos sugere Hernández com seu dinâmico jogo instalativo, a ideia de precariedade pode ser adulterada a partir da perspectiva e do ponto de vista. A construção de objetos com base no improviso e a partir de recursos limitados nos trabalhos de Hernández associa as artes visuais à arquitetura (ao design) e à realidade socioeconômica dos cubanos que, na tentativa de escapar da escassez material, financeira e tecnológica, lançam mão da força criativa e conseguem, muito embora de maneira provisória, transformar a realidade que os cercam.

O artista Bruno Baptistelli, por sua vez, apresenta em Frestas rampas de acesso, corrimãos e pequenos degraus, que destacados do complexo arquitetônico do Sesc Sorocaba, perdem sua funcionalidade e se assumem, exclusivamente, como formas no espaço. Essas peças, pelo despojamento e força de seus elementos estruturais, se por um lado remetem à radicalidade do brutalismo[1], por outro, a verossimilhança formal que essas peças estabelecem com a arquitetura acabam por gerar um desconforto que nos ajuda a visualizar o caráter ambíguo das formas e estruturas arquitetônicas que tanto podem impedir, restringir e excluir como podem facilitar os acessos e usos dos espaços urbanos.

O debate sobre o potencial disciplinador e regulador da arquitetura, da sua interferência no livre uso da cidade e de seus espaços, também está presente na obra Oeste ou até onde o sol pode alcançar (2006) de André Komatsu. No vídeo, o artista se propõe a acompanhar o nascer-pôr do sol, cruzando a cidade de São Paulo de leste a oeste. Nesse percurso se depara com diversos mecanismos, funcionalidades urbanísticas e arquitetônicas de exclusão e restrição que forçam uma alteração, quando não o abandono, da rota originalmente traçada. As sucessivas reformulações de percursos, o confronto literal do corpo do artista com edificações, com sinalizações de orientação, com o desenho urbanístico da cidade e demais impedimentos encontrados pelo trajeto, evidenciam o potencial da arquitetura em interferir no modo de existir e de se relacionar na e com a cidade, suscitando ainda um debate sobre o espaço do comum e sobre o direto a ela mesma. Ainda, vale destacar que esse direito à cidade vem sendo reconfigurado e atualizado diante do programa de desestatização da cidade de São Paulo e do amplo pacote de concessões de seus espaços públicos à empresas privadas que a atual gestão municipal vem empreendendo como uma de suas principais vertentes de atuação.

Em Memorándum [Memorando] (2017) o artista Héctor Zamora constrói, a partir de uma sustentação de andaimes, uma estação retro-futurista de trabalho na qual a estrutura metálica reluzente é confrontada e ocupada pelo complexo mulher-máquina de escrever em uma desumanização que, como propõe Paola Fabres, “confunde a linha de montagem de produto com a do próprio trabalhador”. Nesse trabalho um dos grandes protagonistas é, sem dúvidas, a arquitetura. As austeras estruturas metálicas, na justa adequação da forma à função a que se destinam, produzem uma guarida no limiar da opressão. Tanto disciplinam, a partir dos vários pavimentos, como possibilitam devido sua estrutura vazada o controle e a observação dos corpos-máquinas que, para maior produtividade, guardam entre si apenas a distancia necessária a se evitar distrações decorrentes de interações. Nesse trabalho é possível entrever um debate acerca das contribuições da arquitetura em projetos de controle e exploração da máxima eficiência e produtividade de corpos no ambiente corporativo. Tais atributos evidenciam a manutenção da mais-valia como base da exploração da classe trabalhadora e de princípios da racionalização fordista na contemporaneidade.

[1]Para uma definição ver:  http://www.arquiteturabrutalista.com.br/index1port-conceitos.htm

 

por FABRÍCIA JORDÃO