Femme Maison, de Panmela Castro, na parede do Palacete Scarpa, sede da Secretaria da Cultura. Construído em 1922 pelo Banco União, o Palacete abrigou, ainda nos anos 20, o Partido Nacional Fascista de Sorocaba.

Alguém veio contar: tem uma vulva no meio do caminho – lá na Souza Pereira, sentido Álvaro Soares, mirando os carros no contrafluxo. Ladeada por duas mulheres, que com ela compartilham o olhar que mora ali, na brecha, a figura ocupa, junto com o letreiro do estacionamento, o avesso do Palacete Scarpa, sede da Secretaria da Cultura. É fachada? A parede, revestida com tinta e polêmica, causou a racha da opinião pública: há quem acredite que Panmela Castro, artista participante da segunda edição do Frestas e que propôs a intervenção no prédio histórico, deva se retratar. Por “vandalizar” um edifício tombado e por ofender as mulheres “de bem”, resta à obra ser apagada.

“Flamejantes ciganas a postos abafarão
os berreiros constantes em fogosas rosas gigantes.
Filhos meus, os seus e os nossos.
Selváticas, elas não necessitam seu elogio.
Ela transgride sua orientação!

Refeito o começo bíblico,
não ferirás nenhum corpo por ser feminino
com faca, ou murro, ou graveto.
Eu te prometo, sedarás o mal,
interceptarás no meio do caminho o espeto.
Super heróis de duas vítimas estancadas,
agora és delas a espada e não o algoz.

Ela come a selva de fora,
Ela vem da selva de dentro!”

Karina BuhrSelvática

A quem pertence o corpo da cidade? A quem nossos corpos servem?

Se nossa carne é pública, se o direito ao corpo da mulher é discutido em tribunas, divide opiniões, move discursos de ódio – “feminazi, aborteira, puta” – quão apropriado é que esta reflexão ocupe o próprio espaço público? Quão simbólico é ter nossas vozes representadas por homens, que estes tomem a nossa frente e decidam o que nos ofende, o que nos viola? Mansplaining, diria Rebecca Solnit, historiadora, escritora e ativista norte-americana, em “Os homens explicam tudo pra mim”. Cidade ou mulher, somos espaço público, estrangeiras em nossas próprias vontades. Precisamos de um herói para nos defender da vergonha de enxergar nosso próprio corpo projetado no corpo urbano?

“Desde pequenas observamos nossos primos mostrando seus pintos como troféus aos adultos enquanto nós, meninas, éramos incentivadas a ter vergonha de nossa vagina e a fechar as pernas.”

Panmela CastroSobre a obra Femme Maison, em post nas redes sociais

Se é para tombar, tombemos

A preservação da memória da cidade é causa concreta: se o tombamento do Palacete é o mote para o veto, talvez  a má conservação dos patrimônios históricos seja a pauta mais urgente. Será o tombamento argumento também capaz de frear a mercantilização do corpo urbano, o excludente projeto vertical que segue erguendo fálicos arranha-céus? São interesses públicos ou privados que determinam a ocupação dos equipamentos municipais? Em nome da ordem e da segurança e sob a espreita da especulação imobiliária, a cidade cresce segregada e privatizada. Onde mora o limite entre revitalização e gentrificação?

Fachada do Palacete Scarpa, em imagem do Google Maps.

Fachada do Palacete Scarpa, em imagem do Google Maps.

Como afirma Angela Davis, filósofa, feminista e ícone da luta pelos direitos civis, é preciso considerar a intersecção entre raça, classe e gênero para entender as nuances das opressões. Ali, na parede do Palacete, meio e mensagem se encontram para revestir com outras camadas a Femme Maison. Inserido numa área já tomada pelo grafite e pelo pixo, na qual o comércio de bens divide espaço com o comércio de corpos, o Palacete Scarpa conversa com seu entorno, acolhe, em sua própria estrutura, a cultura e o discurso que moram ali. Fora do cânone, o grafite resiste como expressão da subjetividade humana, no espaço entre a arte e o vandalismo. No próprio ato de se fazer ver e ocupar lugares majoritariamente excludentes, torna-se instrumento de denúncia da violência de um projeto urbano que não contempla todos os seus moradores.

“Para esse grupo historicamente confinado ao espaço privado, o pixo possui um significado especial, uma vez que rompe com a espacialização a que se condiciona o gênero feminino, que passa a ocupar, através da arte, o espaço público das ruas. Na problematização sobre a dualidade público-privado, soma-se aos estereótipos de gênero vigentes associados às mulheres a divisão sexual do trabalho, que atribuiu às mulheres a dedicação prioritária à vida doméstica e colaborou para que a domesticidade feminina fosse qualificada como um traço natural e como um valor regulador para comportamentos desviantes.” 

Dayse Porto, Luana Xavier Pinto Coelho, Maria Eugenia Trombini e Rafaela Pontes de LimaNo artigo “Do lar às ruas: pixo, política e mulheres”

Belas, recatadas e do lar

Entre as minorias segregadas no espaço da cidade, estão também as mulheres. Em tempos de gestões higienistas e que promovem a redução da figura feminina a papéis de submissão e subalternidade, discutir nossa representatividade por meio do grafite, linguagem que leva a marca da rua e da insubordinação, amplia a potência do discurso. Mais do que isso, coloca em xeque os traços de exclusão que podem ser percebidos no próprio cerne do levante da arte urbana, já que tanto o pixo como o grafite tem dado maior protagonismo ao gênero masculino, o que tem acionado novas vozes que batalham pelo reconhecimento e balanceamento da questão. Diante da insistência em nos condicionar pelo sexo, a vulva na parede subverte uma existência alienada por representações objetificadas, hipersexualizadas e mercantilizadas de nossos corpos, historicamente confinados ao espaço privado.

“Viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação “objetiva” com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida.”

Hannah ArendtEm "A Condição Humana"

Quem está dentro da caixa?

A demonização do corpo feminino como ferramenta de controle e dominação atravessa a história. Desde Eva e Lilith, nosso corpo é a própria alegoria da caixa que guarda em si o caos do mundo. Enquanto isso, a misoginia, a cultura do estupro e o machismo estrutural seguem erguendo paredes, privando mulheres de uma existência plena de direitos e autonomia. Pela fenda de Pandora, nos é dada uma chance de encontro com nosso próprio mistério. Se a desordem já é presente, se a violência e a destruição já estão do lado de fora, talvez seja hora de buscar nas frestas, humanas ou urbanas, a esperança que resta lá dentro.

Escrito por:

Aline de Castro