Acontecimentos espaciais: das bordas e frestas aos centros

 

Provavelmente um dos acertos dessa Trienal esteja em sua capacidade de articular ou organizar uma exposição que se sensibiliza ou se dá dentro de outra fisicalidade do seu espaço – do espaço como lugar da experiência ou como lugar da arquitetura vivenciada –, materializando-se no contexto de uma cidade interiorana brasileira. O que se revela, dentro de uma prática curatorial, são experiências artísticas interessadas em tocar a ambigüidade e os impasses de uma modernidade inacabada, mas já em ruína, referindo-se às suas representações no espaço construído, ora evocando o próprio território expandido por onde Frestas acontece, ora referenciando espacialidades mundo afora que sofreram processos semelhantes de desenvolvimento e decadência.

Na exposição, por exemplo, Letícia Ramos apresenta um complexo e aberto universo ficcional desvinculado do presente que parece transitar entre uma tradição e um porvir sobre o qual não se conhece, mesmo ambiente simbólico para o qual o projeto de Frestas parece apontar. Utilizando-se de um repertório da ficção cientifica e desconstruindo as certezas das ciências e da história, a artista parece maquinar mundos possíveis para além da retórica moderna e modernista, o que se apresenta em suas holografias ou mesmo no filme Grão.

A própria escolha por realizar a exposição ativando todos os locais da unidade do Sesc Sorocaba, especialmente o espaço do estacionamento – áreas por vezes imperceptíveis –, ganha especial atenção. Este último, subsolo e lugar de guarda e permanência transitória, torna-se protagonista e ambiência para a arte. Esse é um fator tangível à ideia de que há uma vontade explícita de trabalhar com a adaptabilidade e com o reordenamento de valores na construção do espaço social da experiência.

Desse modo, tal consideração perpassa de forma quase mimética na produção de alguns artistas dessa 2a edição de Frestas, tais como Marcius Galan, Bruno Baptistelli, Deborah Engel, Raul Mourão, Diango Hernandéz ou mesmo na intervenção no espaço público de André Komatsu. Aliás, a ideia de liminaridade e limite, assunto tratado pelo arquiteto e teórico Bernard Tschumi[1] ao esgarçar as fronteiras do campo arquitetônico, são recorrentemente testadas pelas obras desses artistas, confundindo-se com a própria arquitetura, sua representação e ilusão.

Por conseguinte, trata-se de dar a ver o “espaço-entre”, os interstícios ou mesmo aquilo que o arquiteto e teórico Rem Koolhaas chamou de Junkspace[2]. O espaço-lixo é esse lugar que surge quando a modernização ganha seu curso e os efeitos racionais da espacialidade são vivenciados. É o lugar da sobra ou, como diria Koolhaas, o efeito colateral da arquitetura e de seus desdobramentos urbanos. Aqui, considera-se esse o tema da instalação Rupestre (2017) de Marcius Galan, especialmente para Frestas. Nela, o próprio estacionamento torna-se objeto de análise e escrutínio físico e métrico pelo artista. Portanto, a condição assessória e funcional do lugar é invertida, dando-se a ele um protagonismo perante o espectador.

Nesse sentido, o espaço-lixo é identificável em todos os ambientes que percorremos, especialmente nos quais se vive e trabalha[3]. A arte hoje parece querer ressignificá-lo, torná-lo presente e encontrar nele a possibilidade de se pensar novas noções de futuro, tomando para si a tarefa de ressignificar e entender o que sempre permaneceu como velado. Negar, portanto, a noção de purificação e dar vazão ao entendimento do híbrido em suas mais diversas formas parece ser a tônica do debate público; tema nomeado por Bruno Latour, em meados dos anos 1990, em seu ensaio Jamais fomos modernos.

Presentes na exposição, o austríaco Marko Lulic e suas ações performativas encenadas e gravadas são exemplos contumazes de uma vontade de embate simbólico com a noção de pureza que está impregnada nos monumentos e edifícios modernistas. Atravessá-los, personificá-los, trazê-los para a escala do corpo parece ser um passo para desconstruir uma imagem ou lembrança estática em um ambiente capaz de nos responder de forma mais ativa denotando particularidades e histórias esquecidas, todas elas capazes eventualmente de oferecer janelas de entendimento do futuro. Do híbrido ao acontecimento, no limite entre o corpo e a arquitetura, parece haver uma resposta dissonante e antípoda à purificação. Yara Pina, por sua vez, leva a ação do corpo ao extremo, promovendo na destruição e, posteriormente, nos vestígios, encontrar formas de refundamento e transformação.

Enquanto sintoma de um tempo, assim como em Frestas, outras exposições e iniciativas recentes no circuito das artes, tanto aqui no Brasil como fora, especialmente em contextos das “modernidades periféricas”[4], têm apresentado de maneira ainda não sistemática um repertório considerável de artistas e obras que direta ou indiretamente percebem os espaços da experiência que se concebem por apropriações, resistências e invenções distintas do projeto estético e social hegemônico do ocidente – aquele ditado pelo projeto estético do modernismo.

Portanto, Sorocaba, cidade de importância basilar no desenvolvimento econômico e industrial brasileiro principalmente pela produção de café e têxtil, sofreu rápido crescimento no início do século deixando um lastro desenvolvimentista em seu espaço urbano e patrimônio material.  Se por um lado, foi criado o alicerce para uma experiência espacial moderna, por outro, deu-se às costas ao seu passado indígena. Desvelar essa negação de um passado, foi objeto de investigação de Fábio Tremonte, por intermédio das ações da Escola da Floresta, ao promover a leitura ao vivo do Relatório Figueredo.

Hoje, um outro ciclo econômico financista parece tomar conta dos modos de produção local, condenando mais uma vez o passado recente do município. Sendo assim, o projeto de Frestas tem importante papel cultural em alargar as possibilidades de diálogo com os vários tempos de seu passado, dando visibilidade à história que se escreveu nas margens de um circuito hegemônico e para o qual a arte que ali esteve e estará procura dialogar, encarando os impasses do presente para a construção objetiva de um porvir. Indiretamente, ao meu ver, o próprio sentido etimológico do termo “fresta” parece ser objeto de significação e interpretação pelo trabalho dialógico entre a curadoria proposta e as iniciativas dos artistas convidados; algo que já se vislumbrava desde a edição anterior de forma subjacente.

por DIEGO MATOS

 

[1] Três ensaios curtos de Bernard Tschumi, publicados originalmente na Artforum, entre 1980 e 1981, refletem sobre o tema “Arquitetura e limite”. As traduções podem ser encontradas no livro: NESBITT, Kate (org.). Uma Nova Agenda para a Arquitetura: Antologia Teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006.

[2] Termo cunhado pelo arquiteto e teórico Rem Koolhaas por ocasião de seu ensaio Junkspace, em 2000. Sua tradução foi publicada em: SYKES, A. Krista (org.). O Campo Ampliado da Arquitetura: Antologia Teórica (1993-2009). São Paulo: Cosac Naify, 2013.

[3] Por ocasião do 20o Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em um programa público realizado no dia 11/11/2017, o autor do texto e co-curador do Festival promoveu um debate público no qual o professor e critico de arquitetura Guilherme Wisnik – convidado da mesa –  evocou a noção de Junkspace ao falar de uma outra face do espaço material e construído que se apresenta, resultante da corrida da modernidade.

[4] Toma-se emprestado o termo designado pela intelectual Beatriz Sarlo ao falar da modernidade cultural em Buenos Aires, Argentina, que, guardando as devidas proporções e particularidades, apresenta similitudes com o amplo projeto moderno brasileiro desde os anos 1930. Sua teoria critica atenta às complexidades e ambigüidades da modernidade oferece novas formas de análise e compreensão de um ambiente cultural distinto aos das grandes capitais do eixo Europa Ocidental e América do Norte.