De encontro

 

Tinha uma pedra no meio da rua. Uma pedra qualquer, um pouco maior que o normal. Mantive o ritmo e calculei o desvio para contornar. Meu passo é sempre um pouco apressado. Passei de raspão e não olhei para o lado.

Vazadas por alguns recantos do espaço expositivo que acolhe a segunda edição do Frestas Trienal das Artes, percebem-se luzes, sutis. Luzes tênues, que escapam por algumas das arestas e dos ângulos da própria arquitetura. O curso de trânsito de quem caminha pelas obras e visita a exibição desconsidera essas claridades. Mas um corpo curioso quebra o fluxo previsto. Espreita esses cantos recônditos, avança onde nem é chamado, espia por detrás das salas até que se depara com algo ali. Não sabe bem o que é ou do que aquilo faz parte. Esbarra, se tiver sorte, com um objeto estranho, sem qualquer informação ou mensagem descritiva. Em meio à cadência de trabalhos demarcados, abre-se um outro espaço. São fendas da própria exposição encontradas por quem aciona um estado de atenção.

Quantos acasos se perdem? Como garantir o olhar alerta que não desperdiça o embate fortuito? Não se trata apenas de fixar o próprio instante. Antes ainda, trata-se de percebê-lo. Um dia um amigo me disse que era mais interessado naquilo que abandonamos do que no que construímos. Acho que era sua sede por captar e imortalizar o efêmero, dando sentido ao que era fugaz. Já eu, nem sempre estou atenta aos vestígios banais. Talvez devesse olhar ao redor. Dizem que os turistas são os únicos que olham para cima – me tornarei, então, turista no meu próprio território, reterei indícios que brotam dele mesmo.

Que objetos são esses ali? Esses escombros urbanos, em geral interferidos pela ação do tempo, confundem-se entre a relíquia e o entulho, mas se portam feito obra em pedestal. Pensados por C. L. Salvaro, esses artefatos quase arqueológicos, resultantes de seu vagar de andarilho, foram saqueados da cidade de Sorocaba durante o período de seu programa de residência e agora brotam entre brechas escondidas pela exposição. Transportar a matéria bruta do chão dessa terra é montar uma ponte entre o espaço social e o espaço da cultura, já que um utiliza o substrato do outro. Ao mesmo tempo, essa transferência configura uma materialização do encontro do artista com o inusitado. Seria esse o exercício de concretizar sua deriva em relação àquela geografia?

Não apenas. Arrisco afirmar que seu processo de coleta o move não como proposição poética propriamente dita, mas como método para tornar visível a porosidade de um campo que tudo pode englobar.

Assim, C. questiona o próprio sistema do qual faz parte. Apura em nós a cautela do olhar sobre o encontro com tudo o que é corriqueiro, mas principalmente, refina em nós a cautela do olhar sobre o terreno do exercício artístico. Seu papel de artista-catador prova os limites dilatáveis dessa linguagem ampliada, goza com certa ironia da liberdade propositiva atribuída à função do artista e tenciona os critérios que regem os processos de incorporação e de exibição do objeto de arte. Que campo é esse que tem a capacidade de engolfar inclusive o que é descarte? Como entender a ressignificação de valores que ele exerce sobre as coisas que nos rodeiam?

Recolhem-se destroços. Ocultam-se obras. Adulteram-se códigos expográficos. Nega-se o curso de passagem, título ou legenda. Enquanto reinterpreta o valor simbólico do objeto desprezado a partir de seu simples deslocamento, C. L. Salvaro descobre as condições dos modelos de exibição, revertendo as regras que se encontram por trás de qualquer projeto expositivo. No limiar entre mostra [de arte] e não-mostra, sua produção nos chama silenciosamente. Nos atrai para atrás das coxias e nos permite olhar de volta para o mesmo espaço – já a partir de outra perspectiva. Traz então à tona a intimidade da estrutura institucional. Talvez, com ela, traga junto também algumas de suas vulnerabilidades ocultas. Ao identificar furos dessa estrutura, nos faz deambular entre eles.

Tinha algo ali, uma contingência, um encontro, uma aproximação. Uma sinergia entre quem nada procura e a coisa – repentina – que cruza tua frente. Eu não buscava nada, mas o que eu encontro altera meu trajeto. Nesse tempo criado e suspenso, negociado entre parênteses, ativa-se uma outra percepção do presente. Da colisão também surge a soma. Às vezes, nosso fluxo automático é surpreendido e esbarramos por aí, com coisas assim.

 

por PAOLA FABRES