Do direito ao choro

 

Entre os gritos e ruídos que marcam as discórdias dos tempos de hoje, o que mais tem nos ameaçado talvez seja o silêncio. Não aquele espontâneo, intervalar feito respiro, mas o que é imposto e involuntário. Esse que se faz presente nos ritos esquecidos, nos costumes abandonados, nos povos desapercebidos ou na própria criação e expressão que vem sendo abafada. Frente à iminência de extermínios, que atingem desde o campo artístico específico até a cultura geral, nos resta o embate com as forças do apagamento.

No ensaio a seguir, Clarissa Diniz nos abre espaço para pensar sobre esse embate e sua consequência frente à fragilidade da nossa democracia cultural. Parte da sua experiência com a exposição Dja guata porã: Rio de Janeiro indígena, realizada no Museu de Arte do Rio de Janeiro, para versar sobre os regimes de alteridade impelidos sobre a cultura indígena, debruçar-se sobre o contraste Guarani-juruá, mas, mais que tudo, para trazer à tona o questionamento sobre como ultrapassar barreiras já solidificadas e viabilizar processos sensíveis oriundos de zonas destituídas do regramento convencional da arte. Para não compactuar com o silenciamento, como permitir o acolhimento de perspectivas que não obedecem a nossa lógica, garantindo não apenas a liberdade da expressão em si, mas também da forma de se chegar até ela e de garantir sua permanência?

A batalha com relação à resistência cultural também surge como pauta urgente na exposição do Frestas: Trienal de Artes. Susan Hiller, artista presente na mostra, em seu vídeo The Last Silent Movie (O último filme mudo), nos faz testemunhar – assim, como uma plateia inativa e talvez responsável – falas à beira da morte. Dialetos que há tempos enfrentam seu próprio aniquilamento. Maria Theresa Alves também problematiza o desaparecimento de culturas, no caso a Guarani, soterrada pelos ideais do progresso e da conquista, e propõe a reinserção da presença indígena no território de Sorocaba – cidade sede da trienal. Já Escola da Floresta, trabalho de Fábio de Tremonte, transmite ao vivo a leitura do Relatório Figueiredo, documento que nos relata as violências praticadas por latifundiários brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio contra índios na metade do século passado.

Nesse sentido vale reconhecermos essas urgências e observarmos o espaço e a participação das instituições culturais no levantamento desses debates. Qual o papel das instituições como mediadoras e facilitadoras da viabilização do contato artístico? Que fatores devem ser priorizados e como atravessar o modelo cultural hegemônico, possibilitando pontos de vistas que nos dizem respeito quanto às nossas problemáticas latentes, independente da fôrma importada e consagrada? Como resistir às pressões externas que vociferam em nome de uma produção sufocada por uma suposta moral, debilitada por sectarismos e esvaziada pelo capricho? As instituições culturais enfrentam momentos escuros. Deparam-se com a luta por garantir suas vozes e com o esforço para que essas sirvam como dispositivos operantes para a reflexão.  Como coloca Clarissa Diniz e como também menciona Aline de Castro, a escuta é necessária, antes que o silêncio desabe sobre nós [1].

por PAOLA FABRES

 

 

Naquele tal espaço social chamado “trabalho”, nos últimos tempos, andei chorando mais do que o habitual. Não obstante as tensões dadas, foi decerto outra razão que me fez ter vontade de – contra a etiqueta corporativa e patriarcal – deixar correr o choro. Talvez tenha sido no comecinho deste ano que ouvi, de Sandra Benites, colega curadora da exposição Dja guata porã: Rio de Janeiro indígena, a narrativa que me fez assumir outra postura na relação lágrimas-trabalho.

Ela, que é uma instigante educadora Guarani Nhandeva, havia contado de uma aula sobre educação sexual que ministrara numa escola do Rio de Janeiro. Para um grupo de adolescentes, Sandra falou sobre as diferenças percebidas por ela no que tange às relações entre gêneros nos povos Guarani e nos juruá, termo para “não-indígenas” em sua língua. Dentre outros aspectos, ressaltou como que, para o seu povo, a “educação dos homens” seria uma “educação para as mulheres”, no sentido de que aos homens seriam ensinadas (e cobradas) condutas que são, por sua vez, pautadas pelas/para/com as mulheres.

Sandra explicou aos seus alunos não-indígenas que as sociedades Guarani compreendem, por exemplo, que no período menstrual as mulheres não precisam seguir as habituais divisões sociais do trabalho e das demais atividades da comunidade. E que isso, contrariando a patologização da menstruação tão comum nas sociedades juruá, não demonstraria uma ausência de autocontrole ou de aptidão para essas atribuições, tampouco uma fragilidade. Seria, por outro lado, o reconhecimento das diferenças e das potências inextrincáveis aos corpos e seus regimes de radical singularidade. Mais além, seria também o reconhecimento da dimensão relacional desses corpos, cuja alteridade não estaria exatamente numa espécie de aceitação, tolerância ou empatia em relação ao outro, senão voltada, com maior ênfase, para uma espécie de educação de si como educação com o outro.

Todavia, a – infinitamente complexa – discussão colocada por Sandra Benites durante o referido encontro não é precisamente o motivo deste texto, ainda que esteja a todo tempo informando-o. O que se passou na sequência da discussão naquela escola é o que, efetivamente, me tocou em seu relato, pois acontece que, ao final da aula, uma garota foi falar com aquela professora convidada. Identificando-se com as questões pontuadas por Sandra e de alguma forma conturbada pelos desafios delas decorrentes, a estudante se disse tão tocada que estava “com vontade de chorar”. Ao ser perguntada por que então ela não estava chorando, a menina disse que ali não poderia fazê-lo: a escola e os colegas não conformariam um ambiente receptivo àquele tipo de expressão.

Evidentemente, o interdito sentido pela estudante era um exemplo agudo das preocupações de Sandra. E foi assim que, numa digressão ética e política que sou incapaz de reproduzir, Benites nos lançou na mais crítica – e, ao que me pareceu, cristalina – advertência: “se não pudermos chorar, não conseguiremos escutar”. Sua leitura sobre o choro como tabu era, evidentemente, uma importantíssima análise dos regimes de alteridade comuns aos povos dos quais grande parte de nós, juruá, fazemos parte. Não obstante, a clareza com a qual Sandra colocou a relação choro-escuta me tocou também noutro ponto, a ideia de expressão.

Porque o pano de fundo de tudo isso, o processo de desenvolvimento da exposição Dja guata porã[2] – um projeto em torno da presença indígena no Rio, construído com aldeias, grupos e movimentos indígenas do estado –, estava diariamente colocando-nos questões (ou talvez eu devesse assumir que, mais do que questões, tratava-se de pressões) em torno das relações entre expressão, criação e arte.

A exposição havia preterido a já não incomum abordagem das “questões indígenas” por meio de “obras de artistas contemporâneos” em prol da construção, com indígenas, de uma exposição sobre aquilo que julgassem relevante. Com isso, ainda que tenha engendrado o mais amplo processo de comissionamento já realizado pelo Museu de Arte do Rio – MAR, Dja guata porã o fez, todavia, numa chave de desprendimento em relação à ideia de arte[3]. Resumidamente, esse enérgico programa de comissionamento produziu as presenças da exposição em detrimento de serem, ou não, arte. Não que não importasse a discussão da mesma (a mostra tem, inclusive, uma estação concebida em colaboração com Edson Kayapó, a qual problematiza a concepção ocidental – e moderna – de arte desde a perspectiva indígena). Entretanto, as circunscrições simbólicas, econômicas, sociais e políticas da ideia de arte foram deliberadamente postas de lado em nome de seu próprio transbordamento.

As preocupações éticas da metodologia de construção da exposição ombrearam-se a concepções de criação e de expressão das culturas indígenas para, assim, perpetrarem esse transbordamento. Pareceu-nos que ceder às pressões da arte (ou àquelas de um museu de arte) seria tamponar a escuta e, necessariamente, o diálogo. A visibilidade e o protagonismo de experiências sensíveis que existem em detrimento do campo epistemológico, institucional e economicamente hegemônico da arte seriam, de algum modo, desinterdições ao choro enquanto expressão pública, legítima e potente.

Houve, obviamente, um significativo debate – por assim dizer, posto que não me ocorreu termo melhor – estético. Arquitetura, cores, grafismos, cenografias, maquetes, músicas, referências, vocabulários, tempos, edições, imagens e tantos outros aspectos foram intensamente discutidos entre os participantes. Debates profundamente enriquecedores se deram em torno de soluções formais e simbólicas tanto entre os indígenas participantes da mostra, quanto entre estes e os não-indígenas que, como eu, nela estavam atuando. Considerando o fato de que alguns desses indígenas estão em processo de etnogênese (como no admirável movimento de ressurgência Puri), a discussão complexificou-se para muito além do binarismo indígena/não-indígena, colocando em questão ideias (por vezes paradigmáticas) como “forma”, “metáfora”, “literalidade”, “símbolo”, “comunicação”, “excelência”, as quais foram experimentadas em relação – ou em tensão –, mas não necessariamente em consonância à ideia de arte.

Para um mais acurado entendimento da situação, há que se exemplificar que, em que pese o cabimento dos juízos a partir de determinados pontos de vista, Dja guata porã: Rio de Janeiro indígena foi criticada por “não apresentar arte”, “dar visibilidade a trabalhos escolares” [sic], “não apresentar os originais das obras históricas”[4], “ser kitsch” [sic], “dar visibilidade a não artistas”, “apresentar arte de má qualidade”. Essas críticas quase sempre se dizem cientes dos parâmetros adotados no desenvolvimento da exposição (não se trataria, portanto, de uma situação de desconhecimento em torno dessas escolhas), mas, “ainda assim”, pontuam seu estranhamento[5] em relação às implicações estéticas desses parâmetros – éticos, culturais e políticos –, interpretados como “insuficientes”, “insatisfatórios” e até mesmo “paternalistas”.

Curiosamente, alguns meses depois o Brasil viu-se assaltado por um intenso debate em torno do encerramento precoce de Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, logo amplificado pela obtusa acusação de “pedofilia” tanto à mostra realizada e depois fechada pelo Santander Cultural, quanto à performance La bête, que integrava o 35o Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Inclusive o Museu de Arte do Rio sofreu uma tentativa[6] de afogamento público ao imaginar a possibilidade de reabertura de Queermuseu. Ao que me parece, esse debate – oportunamente produzido/transformado em “polêmica” pelos interesses que o querem tomar como cortina de fumaça face às verdadeiramente urgentes e absurdas questões políticas nacionais que precisam ser debatidas[7] – guarda, todavia, aspectos não tão distantes assim do interdito ao choro.

Pois, se é notório que grande parte das críticas (que, importante frisar, apontam também para “desrespeito religioso” ou “vilipêndio”) à arte apresentada nessas exposições está informada por concepções religiosas (em especial, pentecostais e neopentecostais) – quase sempre restringindo o debate ao dogmatismo –, parece-me também evidente que a contestação em curso não poderia ser circunscrita exclusivamente a pontos de vista morais ou políticos. Ela é também um debate ético e estético que está (ainda que por uma minoria dos agentes dessa crítica) colocando importantíssimas perguntas à arte[8]. Mesmo que posto e manipulado confusa, oportunista e eleitoreiramente, estamos diante de um debate que tem contraposto liberdades a interditos de expressão. Noutros termos, o direito, o privilégio e a desaprovação de chorar pública e legitimamente. E, conforme o ensinamento guarani, principal e fundamentalmente, o direito, o privilégio e a obstrução da escuta.

Tal como o debate estético em torno de Dja guata porã não poderia ser reduzido ao binarismo indígenas/não-indígenas, a disputa sensível que com algum esforço pode se perceber por entre essa cortina de fumaça e seu respectivo (irresponsável e arrivista) estardalhaço midiático e social tampouco pode ser restringido a binarismos como evangélicos e não-evangélicos, direita e esquerda, fascistas e democráticos, “especialistas, não-iniciados e ignorantes”. Em que pese igualmente a dimensão de luta de classes que é inextrincável a todo esse processo – que provoca e insufla forças contra hegemônicas sem que me pareça, todavia, absolutamente inviolável a crença de que, mediante a complexidade e a diversidade das hegemonias culturais no Brasil de hoje, a arte que está sendo questionada esteja situada no território do contra hegemônico – e a intrincada e urgente ambição/necessidade de democracia cultural, pergunto-me, em resposta às perguntas que foram lançadas a partir de Dja guata porã e diante dos últimos acontecimentos, se eventualmente certa “arte” que se imagina certa[9] não estaria incorrendo em epistemicídio cultural, estético e sensível ao não escutar o choro. Ou, ainda, ao também não chorar para poder escutar.

por CLARISSA DINIZ

 

[1] Ver texto de Aline de Castro em: < http://frestas.sescsp.org.br/2017/blog/requiem-para-os-invisiveis-2/>

[2] Sobre a exposição: https://www.youtube.com/watch?v=HJcxYBLiDUE.

[3] Seja lá o que isso for.

[4] Leia-se: não reverenciar as obras dos colonizadores.

[5] Isso é, obviamente, um eufemismo.

[6] Pergunto-me se isso também não seria um eufemismo.

[7] Sobre essa perversa e covarde manobra política, sugiro a leitura de dois esclarecedores e provocadores textos de Eliane Brum:  Gays e crianças como moeda eleitoral (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/18/opinion/1505755907_773105.html) e Como fabricar monstros para garantir o poder em 2018 (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/30/opinion/1509369732_431246.html).

[8] Perguntas que se dão precisamente a contrapelo do corporativo, burguês e hegemônico “seja lá o que isso for”.

[9] Aqui colocada, sob muitos riscos, de modo genérico.