Entre pós-verdades e acontecimentos: devaneios de uma visitante

 

Especulações duvidosas e convicções pessoais que cada vez estão sujeitas a ganhar contornos de verdades autoportantes. Pensar o advento de pós-verdades parte do pressuposto da existência de verdades, por mais construídas e anacrônicas que sejam. Um absoluto que reconhece um outro absoluto, mesmo que por sua negação. Um absoluto que se sobrepõe a outro na formulação de discursos e na sua recepção e entendimento por outros. Pós-verdade: um termo, portanto, que se articula em torno de uma distinção clara entre a autenticidade e veracidade de dados factuais, em torno da inconsistência da ficção e da relatividade da percepção subjetiva, entre estruturas e não-estruturas, entre um antes e um depois. Apesar de já terem sido proclamadas as fissuras e os limites dos discursos teleológicos e das normatividades engessadas, seguimos reafirmando-os, como se a pronúncia de tal sentença soasse mais verossímil aos nossos ouvidos, ao mesmo tempo em que se distancia conforme a reiteramos. Como quando repetimos a mesma palavra inúmeras vezes, replicando o mesmo movimento da boca ao emitir àquela sonoridade, e o ato da fala, por um momento, parecesse se desvencilhar de sua condição de receptáculo de sentidos.

Logo que entrou na sala expositiva, entre uma série de desenhos que mesclam formas abstratas a sinuosas figuras serpentinas e uma estrutura gradeada com elementos que efetuavam um movimento pendular, avistou duas caixas com CDs que poderiam passar despercebidas. Diante delas, uma mesa com dois livros. 500304 AD. 500305 AD. 500306 AD. 500307AD. Duas vozes monótonas alternavam datas. Será que a sequência pronunciada pelos alto-falantes seguia a ordem do livro aberto diante de si? A intervalos regulares, uma mulher e um homem pronunciavam aqueles anos, como se o intervalo entre eles pudessem conter desde os passados revoltos até futuros possíveis. Por mais que essa enumeração fastidiosa pudesse desafiar uma ideia de cronologia, não deixava de sugerir uma cadência, uma estrutura rítmica, à imagem de um metrônomo que dita o passo de uma música por vir. Decidiu que improvisaria o seu percurso e o tempo que passaria diante de cada obra a partir daquele descompasso de entrada.

Ação e reação. Modelos e antimodelos. Ordem e subversão. Tal contraposição parece não contornar a dialética entre polos, uma dinâmica binária e bidimensional. Todos em guarda na luta em relação a padrões legítimos para uns, opressores para outros. Em ambos os lados desse duelo, perder-se em justificativas infinitas e procurando tecer um discurso coerente e cimentado o suficiente enquanto embate e posicionamento político. Prontos para o (contra-)ataque.

Enquanto assistia um homem percorrer salas de museu fazendo demonstrações de passos a serem performados em caso de ameaça iminente, a frase que ele pronunciou alguns momentos antes reverberou. “Minha abordagem é a mesma”, disse aquele guarda de museu, em um relato confessional em uma projeção em tamanho real sobre a sua experiência passada como policial. Aquela coreografia fazia mais sentido e foi se confirmando quando algumas obras que pontuavam as paredes do museu foram se substituindo por trechos pixelizados de vídeos amadores, flagrantes de cenas de conflitos. Em uma exposição, assistia a uma narrativa que se desenrolava em outro espaço expositivo. Lembrou então de um texto da artista. Interesses econômicos, jogos de poder, devires políticos, talvez a sentença do “museu como campo de batalha” nunca tivesse sido mais atual.

Na arena dos espectros de debate, golpes palpáveis atingem corpos ansiosos e vulneráveis. As escalas se confundem, o diálogo e a vivência presencial parece cada vez mais distante neste teatro no qual se devem sustentar abstrações, cartazes e poses. Ser imagem e se identificar com ela: expectativa e objetivo. Nesse jogo, o campo das relações interpessoais, da experiência incorporada, do sensorial, do desejo e do sentir devem sincronizar-se às redes wi-fi, definitivamente mediado por algoritmos que se valem de rostos digitalizados.

Depois de passar por duas cortinas pretas, ofuscada por um feixe de luz frontal, desembocou em uma pequena plataforma elevada. O seu limite parecia delimitar um abismo que a separava de uma série de televisores que reproduziam faces de espectadores entusiasmados que entoavam uma ovação coletiva. Entre aplausos e olhares risonhos, uma mescla de sensações. Um semblante de jubilação e uma certa vergonha de receber aquela saudação mesmo que tão artificial, dentro de um espetáculo cuja sinopse ignorava, e mais ainda, no qual o seu protagonismo permanecia uma incógnita. Tímida, deu meia-volta e procurou esvair-se o mais rápido possível pela porta por onde entrou.

Por mais postiças e abstratas que sejam essas reações às imagens, no entanto, talvez elas abram um possível campo para exercer a empatia, um tipo de vínculo personalizado, um modo afetivo de se relacionar com as coisas que extrapola a distinção instaurada pelos modelos binários nos quais podemos situar, entre outros, a dualidade entre verdades e pós-verdades. Independente da consistência ontológica do objeto com o qual se entra em ressonância, a dinâmica mimética da empatia leva o sujeito a se identificar com aquele objeto ou imagem, desencadeando uma resposta emotiva, mnemônica e corporal. Talvez esse seja um ponto de partida para despretensiosamente se reapropriar de certa autenticidade, mesmo que subjetiva e parcial, e poder olhar nos olhos fugitivos do que entendemos por realidade.

Figuras trêmulas que tentam disfarçar as pulsações que animam seus corpos ao desenhar graciosas posturas. Alguns adereços, feitos com materiais cintilantes, refletem uma luz amarelada enviesada, demarcando os contornos de seus perfis e projetando as sombras de uma estrutura que as enquadra. Diante de um fundo sombrio, hastes que desenham uma espécie de arquitetura mínima delimitam um espaço abstrato, esse que imobiliza e confere um ar estranho que só emana das coreografias mais familiares. O todo gira vagarosamente diante dos olhos da visitante que de súbito se recordou que não estava segurando aquela pequena caixinha de música que, quando criança, sua mãe sempre acionava antes dela dormir.

 

O texto alterna reflexões sobre o mote da segunda edição da Trienal de Sorocaba, Entre pós-verdades e acontecimentos, e relatos auto fictícios de uma possível experiência diante dos seguintes trabalhos da exposição: On Kawara, One Million Years (Past and Future), 2009 e One Million Years, 1999; Hito Steryl, Guards, 2012; Celina Portella, Público, 2017; Daria Martin, In the palace,  2000.
por OLIVIA ARDUI