Uma prisão é uma prisão

No filme F for Fake, de Orson Welles, ante a prisão iminente, o famoso pintor e falsificador de obras de arte Elmyr de Hory afirmou: Estar em uma prisão aqui, eu diria, é melhor do que em qualquer outro lugar. Mas uma prisão é uma prisão. Enfrentemos. O lugar ao qual de Hory se referia era a ilha de Ibiza, situada no arquipélago das Ilhas Baleares, banhada pelo Mar Mediterrâneo, localizada na costa leste da Península Ibérica. Nesta ilha, ameaçado de extradição, o pintor, que tinha chegado seduzido pela beleza e pela tranquilidade do lugar, cometeu suicídio em 11 de dezembro de 1976.

O boom do turismo em Ibiza veio com os anos 60 e 70 no século passado. O processo da relativa abertura política da última etapa da ditadura, a inauguração do aeroporto da ilha e a desvalorização da moeda atrairam em princípio milhares de cidadãos britânicos, tornando Ibiza, imediatamente, um lugar imperdível para a comunidade hippie. Os artistas e intelectuais que escolheram a ilha na década de 1950 como um refúgio idílico começaram a abandoná-la frente ao desaparecimento de sua tranquilidade que abria espaço a um enorme afluxo de visitantes ansiosos pela vida noturna.

O fenômeno de surgimento das casas noturnas já havia começado no final dos anos 60, ainda que tivesse um desenvolvimento especial na década de 80 e, variando seus formatos, se estende até o presente. Irene de Andrés começou em 2011 Onde nada acontece, um projeto de longa distância que coexiste com o desenvolvimento de outras obras. A atividade das discotecas que a artista documentou passa por nomes tão sugestivos como Idea, Festival Club, Heaven, Toro Mar ou Glory, que tem dado título a cada um desses episódios e supõe um estudo detalhado dessa vida noturna em que a ilha baseou sua economia nas últimas décadas.

Como assimilar o conceito de turismo quando se nasce em um local oferecido como destino idílico pelas agências de viagens? O trabalho de Irene de Andrés aprofunda a análise detalhada da representação do ideal e da configuração de uma imagem padronizada do que todos devemos entender como um destino arquetípico: um lugar onde desconectamos do ambiente odioso no qual permanecemos o resto do ano.

Residente em Madrid desde 2004, Irene de Andrés viaja para Ibiza, geralmente, para regressar ao seu lugar de origem, enfrentando uma viagem na direção oposta que ativa a memória do seu passado. A relação com esse destino de férias é, em seu caso, simplesmente um retorno à casa da família e Onde nada acontece foi criado a partir dessas visitas específicas, trazendo uma linha fina entre a vida diária dos habitantes da ilha e o uso desses espaços de lazer projetado inicialmente para o turismo.

A maneira pela qual Irene de Andrés aborda seu trabalho passa por um registro documental em que são inseridos uma série de ficções que reativam a ruína que enfrentamos. Então, lançar uma edição especial do Diario de Ibiza em que cada uma das notícias se referem a aberturas, fechamentos, publicidade e incidentes que ocorreram nesses espaços coexiste com a introdução de maquetes, objetos resgatados dos entulhos ou a introdução de uma bola de espelhos que fala sobre a chegada do laser aos salões de baile da ilha através de um desses clubes que podem ser vistos em Heaven, o terceiro capítulo deste projecto incluído na segunda edição do Frestas – Trienal de Arte.

“Donde nada ocurre entremezcla la realidad y la ficción como gesto simbólico que alude a esa cultura de la desconexión transitoria, de la esencial falta de acontecimientos en contraposición a una actividad incesante que en realidad ha vaciado el lugar

Onde nada acontece mistura realidade e ficção como um gesto simbólico que alude à cultura da desconexão transitória, da falta essencial de acontecimentos em oposição a uma atividade incessante que acaba esvaziando o lugar. Ao mesmo tempo, trata do uso de um espaço como Ibiza, cercado de água, que há décadas foi assumido por um clima de “vale tudo” que coexiste com a vida diária dos habitantes da ilha e que, em muitos casos, os tornou escravos daquela maquinária que move grande parte da economia local. Sem dúvida, a beleza da ilha a transforma em um lugar particularmente agradável, mas talvez aqueles muros da prisão a que Elmyr de Hory se referiu acabaram sendo expandidos para confundir com o litoral e dificultar a saída desse paraíso artificial.

por ANGEL CALVO ULLOA