Do direito ao choro

 

Entre os gritos e ruídos que marcam as discórdias dos tempos de hoje, o que mais tem nos ameaçado talvez seja o silêncio. Não aquele espontâneo, intervalar feito respiro, mas o que é imposto e involuntário. Esse que se faz presente nos ritos esquecidos, nos costumes abandonados, nos povos desapercebidos ou na própria criação e expressão que vem sendo abafada. Frente à iminência de extermínios, que atingem desde o campo artístico específico até a cultura geral, nos resta o embate com as forças do apagamento.

No ensaio a seguir, Clarissa Diniz nos abre espaço para pensar sobre esse embate e sua consequência frente à fragilidade da nossa democracia cultural. Parte da sua experiência com a exposição Dja guata porã: Rio de Janeiro indígena, realizada no Museu de Arte do Rio de Janeiro, para versar sobre os regimes de alteridade impelidos sobre a cultura indígena, debruçar-se sobre o contraste Guarani-juruá, mas, mais que tudo, para trazer à tona o questionamento sobre como ultrapassar barreiras já solidificadas e viabilizar processos sensíveis oriundos de zonas destituídas do regramento convencional da arte. Para não compactuar com o silenciamento, como permitir o acolhimento de perspectivas que não obedecem a nossa lógica, garantindo não apenas a liberdade da expressão em si, mas também da forma de se chegar até ela e de garantir sua permanência?

A batalha com relação à resistência cultural também surge como pauta urgente na exposição do Frestas: Trienal de Artes. Susan Hiller, artista presente na mostra, em seu vídeo The Last Silent Movie (O último filme mudo), nos faz testemunhar – assim, como uma plateia inativa e talvez responsável – falas à beira da morte. Dialetos que há tempos enfrentam seu próprio aniquilamento. Maria Theresa Alves também problematiza o desaparecimento de culturas, no caso a Guarani, soterrada pelos ideais do progresso e da conquista, e propõe a reinserção da presença indígena no território de Sorocaba – cidade sede da trienal. Já Escola da Floresta, trabalho de Fábio de Tremonte, transmite ao vivo a leitura do Relatório Figueiredo, documento que nos relata as violências praticadas por latifundiários brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio contra índios na metade do século passado.

Nesse sentido vale reconhecermos essas urgências e observarmos o espaço e a participação das instituições culturais no levantamento desses debates. Qual o papel das instituições como mediadoras e facilitadoras da viabilização do contato artístico? Que fatores devem ser priorizados e como atravessar o modelo cultural hegemônico, possibilitando pontos de vistas que nos dizem respeito quanto às nossas problemáticas latentes, independente da fôrma importada e consagrada? Como resistir às pressões externas que vociferam em nome de uma produção sufocada por uma suposta moral, debilitada por sectarismos e esvaziada pelo capricho? As instituições culturais enfrentam momentos escuros. Deparam-se com a luta por garantir suas vozes e com o esforço para que essas sirvam como dispositivos operantes para a reflexão.  Como coloca Clarissa Diniz e como também menciona Aline de Castro, a escuta é necessária, antes que o silêncio desabe sobre nós [1].

por PAOLA FABRES

 

 

Naquele tal espaço social chamado “trabalho”, nos últimos tempos, andei chorando mais do que o habitual. Não obstante as tensões dadas, foi decerto outra razão que me fez ter vontade de – contra a etiqueta corporativa e patriarcal – deixar correr o choro. Talvez tenha sido no comecinho deste ano que ouvi, de Sandra Benites, colega curadora da exposição Dja guata porã: Rio de Janeiro indígena, a narrativa que me fez assumir outra postura na relação lágrimas-trabalho.

Ela, que é uma instigante educadora Guarani Nhandeva, havia contado de uma aula sobre educação sexual que ministrara numa escola do Rio de Janeiro. Para um grupo de adolescentes, Sandra falou sobre as diferenças percebidas por ela no que tange às relações entre gêneros nos povos Guarani e nos juruá, termo para “não-indígenas” em sua língua. Dentre outros aspectos, ressaltou como que, para o seu povo, a “educação dos homens” seria uma “educação para as mulheres”, no sentido de que aos homens seriam ensinadas (e cobradas) condutas que são, por sua vez, pautadas pelas/para/com as mulheres.

Sandra explicou aos seus alunos não-indígenas que as sociedades Guarani compreendem, por exemplo, que no período menstrual as mulheres não precisam seguir as habituais divisões sociais do trabalho e das demais atividades da comunidade. E que isso, contrariando a patologização da menstruação tão comum nas sociedades juruá, não demonstraria uma ausência de autocontrole ou de aptidão para essas atribuições, tampouco uma fragilidade. Seria, por outro lado, o reconhecimento das diferenças e das potências inextrincáveis aos corpos e seus regimes de radical singularidade. Mais além, seria também o reconhecimento da dimensão relacional desses corpos, cuja alteridade não estaria exatamente numa espécie de aceitação, tolerância ou empatia em relação ao outro, senão voltada, com maior ênfase, para uma espécie de educação de si como educação com o outro.

Todavia, a – infinitamente complexa – discussão colocada por Sandra Benites durante o referido encontro não é precisamente o motivo deste texto, ainda que esteja a todo tempo informando-o. O que se passou na sequência da discussão naquela escola é o que, efetivamente, me tocou em seu relato, pois acontece que, ao final da aula, uma garota foi falar com aquela professora convidada. Identificando-se com as questões pontuadas por Sandra e de alguma forma conturbada pelos desafios delas decorrentes, a estudante se disse tão tocada que estava “com vontade de chorar”. Ao ser perguntada por que então ela não estava chorando, a menina disse que ali não poderia fazê-lo: a escola e os colegas não conformariam um ambiente receptivo àquele tipo de expressão.

Evidentemente, o interdito sentido pela estudante era um exemplo agudo das preocupações de Sandra. E foi assim que, numa digressão ética e política que sou incapaz de reproduzir, Benites nos lançou na mais crítica – e, ao que me pareceu, cristalina – advertência: “se não pudermos chorar, não conseguiremos escutar”. Sua leitura sobre o choro como tabu era, evidentemente, uma importantíssima análise dos regimes de alteridade comuns aos povos dos quais grande parte de nós, juruá, fazemos parte. Não obstante, a clareza com a qual Sandra colocou a relação choro-escuta me tocou também noutro ponto, a ideia de expressão.

Porque o pano de fundo de tudo isso, o processo de desenvolvimento da exposição Dja guata porã[2] – um projeto em torno da presença indígena no Rio, construído com aldeias, grupos e movimentos indígenas do estado –, estava diariamente colocando-nos questões (ou talvez eu devesse assumir que, mais do que questões, tratava-se de pressões) em torno das relações entre expressão, criação e arte.

A exposição havia preterido a já não incomum abordagem das “questões indígenas” por meio de “obras de artistas contemporâneos” em prol da construção, com indígenas, de uma exposição sobre aquilo que julgassem relevante. Com isso, ainda que tenha engendrado o mais amplo processo de comissionamento já realizado pelo Museu de Arte do Rio – MAR, Dja guata porã o fez, todavia, numa chave de desprendimento em relação à ideia de arte[3]. Resumidamente, esse enérgico programa de comissionamento produziu as presenças da exposição em detrimento de serem, ou não, arte. Não que não importasse a discussão da mesma (a mostra tem, inclusive, uma estação concebida em colaboração com Edson Kayapó, a qual problematiza a concepção ocidental – e moderna – de arte desde a perspectiva indígena). Entretanto, as circunscrições simbólicas, econômicas, sociais e políticas da ideia de arte foram deliberadamente postas de lado em nome de seu próprio transbordamento.

As preocupações éticas da metodologia de construção da exposição ombrearam-se a concepções de criação e de expressão das culturas indígenas para, assim, perpetrarem esse transbordamento. Pareceu-nos que ceder às pressões da arte (ou àquelas de um museu de arte) seria tamponar a escuta e, necessariamente, o diálogo. A visibilidade e o protagonismo de experiências sensíveis que existem em detrimento do campo epistemológico, institucional e economicamente hegemônico da arte seriam, de algum modo, desinterdições ao choro enquanto expressão pública, legítima e potente.

Houve, obviamente, um significativo debate – por assim dizer, posto que não me ocorreu termo melhor – estético. Arquitetura, cores, grafismos, cenografias, maquetes, músicas, referências, vocabulários, tempos, edições, imagens e tantos outros aspectos foram intensamente discutidos entre os participantes. Debates profundamente enriquecedores se deram em torno de soluções formais e simbólicas tanto entre os indígenas participantes da mostra, quanto entre estes e os não-indígenas que, como eu, nela estavam atuando. Considerando o fato de que alguns desses indígenas estão em processo de etnogênese (como no admirável movimento de ressurgência Puri), a discussão complexificou-se para muito além do binarismo indígena/não-indígena, colocando em questão ideias (por vezes paradigmáticas) como “forma”, “metáfora”, “literalidade”, “símbolo”, “comunicação”, “excelência”, as quais foram experimentadas em relação – ou em tensão –, mas não necessariamente em consonância à ideia de arte.

Para um mais acurado entendimento da situação, há que se exemplificar que, em que pese o cabimento dos juízos a partir de determinados pontos de vista, Dja guata porã: Rio de Janeiro indígena foi criticada por “não apresentar arte”, “dar visibilidade a trabalhos escolares” [sic], “não apresentar os originais das obras históricas”[4], “ser kitsch” [sic], “dar visibilidade a não artistas”, “apresentar arte de má qualidade”. Essas críticas quase sempre se dizem cientes dos parâmetros adotados no desenvolvimento da exposição (não se trataria, portanto, de uma situação de desconhecimento em torno dessas escolhas), mas, “ainda assim”, pontuam seu estranhamento[5] em relação às implicações estéticas desses parâmetros – éticos, culturais e políticos –, interpretados como “insuficientes”, “insatisfatórios” e até mesmo “paternalistas”.

Curiosamente, alguns meses depois o Brasil viu-se assaltado por um intenso debate em torno do encerramento precoce de Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira, logo amplificado pela obtusa acusação de “pedofilia” tanto à mostra realizada e depois fechada pelo Santander Cultural, quanto à performance La bête, que integrava o 35o Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Inclusive o Museu de Arte do Rio sofreu uma tentativa[6] de afogamento público ao imaginar a possibilidade de reabertura de Queermuseu. Ao que me parece, esse debate – oportunamente produzido/transformado em “polêmica” pelos interesses que o querem tomar como cortina de fumaça face às verdadeiramente urgentes e absurdas questões políticas nacionais que precisam ser debatidas[7] – guarda, todavia, aspectos não tão distantes assim do interdito ao choro.

Pois, se é notório que grande parte das críticas (que, importante frisar, apontam também para “desrespeito religioso” ou “vilipêndio”) à arte apresentada nessas exposições está informada por concepções religiosas (em especial, pentecostais e neopentecostais) – quase sempre restringindo o debate ao dogmatismo –, parece-me também evidente que a contestação em curso não poderia ser circunscrita exclusivamente a pontos de vista morais ou políticos. Ela é também um debate ético e estético que está (ainda que por uma minoria dos agentes dessa crítica) colocando importantíssimas perguntas à arte[8]. Mesmo que posto e manipulado confusa, oportunista e eleitoreiramente, estamos diante de um debate que tem contraposto liberdades a interditos de expressão. Noutros termos, o direito, o privilégio e a desaprovação de chorar pública e legitimamente. E, conforme o ensinamento guarani, principal e fundamentalmente, o direito, o privilégio e a obstrução da escuta.

Tal como o debate estético em torno de Dja guata porã não poderia ser reduzido ao binarismo indígenas/não-indígenas, a disputa sensível que com algum esforço pode se perceber por entre essa cortina de fumaça e seu respectivo (irresponsável e arrivista) estardalhaço midiático e social tampouco pode ser restringido a binarismos como evangélicos e não-evangélicos, direita e esquerda, fascistas e democráticos, “especialistas, não-iniciados e ignorantes”. Em que pese igualmente a dimensão de luta de classes que é inextrincável a todo esse processo – que provoca e insufla forças contra hegemônicas sem que me pareça, todavia, absolutamente inviolável a crença de que, mediante a complexidade e a diversidade das hegemonias culturais no Brasil de hoje, a arte que está sendo questionada esteja situada no território do contra hegemônico – e a intrincada e urgente ambição/necessidade de democracia cultural, pergunto-me, em resposta às perguntas que foram lançadas a partir de Dja guata porã e diante dos últimos acontecimentos, se eventualmente certa “arte” que se imagina certa[9] não estaria incorrendo em epistemicídio cultural, estético e sensível ao não escutar o choro. Ou, ainda, ao também não chorar para poder escutar.

por CLARISSA DINIZ

 

[1] Ver texto de Aline de Castro em: < http://frestas.sescsp.org.br/2017/blog/requiem-para-os-invisiveis-2/>

[2] Sobre a exposição: https://www.youtube.com/watch?v=HJcxYBLiDUE.

[3] Seja lá o que isso for.

[4] Leia-se: não reverenciar as obras dos colonizadores.

[5] Isso é, obviamente, um eufemismo.

[6] Pergunto-me se isso também não seria um eufemismo.

[7] Sobre essa perversa e covarde manobra política, sugiro a leitura de dois esclarecedores e provocadores textos de Eliane Brum:  Gays e crianças como moeda eleitoral (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/18/opinion/1505755907_773105.html) e Como fabricar monstros para garantir o poder em 2018 (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/30/opinion/1509369732_431246.html).

[8] Perguntas que se dão precisamente a contrapelo do corporativo, burguês e hegemônico “seja lá o que isso for”.

[9] Aqui colocada, sob muitos riscos, de modo genérico.

Acontecimentos espaciais: das bordas e frestas aos centros

 

Provavelmente um dos acertos dessa Trienal esteja em sua capacidade de articular ou organizar uma exposição que se sensibiliza ou se dá dentro de outra fisicalidade do seu espaço – do espaço como lugar da experiência ou como lugar da arquitetura vivenciada –, materializando-se no contexto de uma cidade interiorana brasileira. O que se revela, dentro de uma prática curatorial, são experiências artísticas interessadas em tocar a ambigüidade e os impasses de uma modernidade inacabada, mas já em ruína, referindo-se às suas representações no espaço construído, ora evocando o próprio território expandido por onde Frestas acontece, ora referenciando espacialidades mundo afora que sofreram processos semelhantes de desenvolvimento e decadência.

Na exposição, por exemplo, Letícia Ramos apresenta um complexo e aberto universo ficcional desvinculado do presente que parece transitar entre uma tradição e um porvir sobre o qual não se conhece, mesmo ambiente simbólico para o qual o projeto de Frestas parece apontar. Utilizando-se de um repertório da ficção cientifica e desconstruindo as certezas das ciências e da história, a artista parece maquinar mundos possíveis para além da retórica moderna e modernista, o que se apresenta em suas holografias ou mesmo no filme Grão.

A própria escolha por realizar a exposição ativando todos os locais da unidade do Sesc Sorocaba, especialmente o espaço do estacionamento – áreas por vezes imperceptíveis –, ganha especial atenção. Este último, subsolo e lugar de guarda e permanência transitória, torna-se protagonista e ambiência para a arte. Esse é um fator tangível à ideia de que há uma vontade explícita de trabalhar com a adaptabilidade e com o reordenamento de valores na construção do espaço social da experiência.

Desse modo, tal consideração perpassa de forma quase mimética na produção de alguns artistas dessa 2a edição de Frestas, tais como Marcius Galan, Bruno Baptistelli, Deborah Engel, Raul Mourão, Diango Hernandéz ou mesmo na intervenção no espaço público de André Komatsu. Aliás, a ideia de liminaridade e limite, assunto tratado pelo arquiteto e teórico Bernard Tschumi[1] ao esgarçar as fronteiras do campo arquitetônico, são recorrentemente testadas pelas obras desses artistas, confundindo-se com a própria arquitetura, sua representação e ilusão.

Por conseguinte, trata-se de dar a ver o “espaço-entre”, os interstícios ou mesmo aquilo que o arquiteto e teórico Rem Koolhaas chamou de Junkspace[2]. O espaço-lixo é esse lugar que surge quando a modernização ganha seu curso e os efeitos racionais da espacialidade são vivenciados. É o lugar da sobra ou, como diria Koolhaas, o efeito colateral da arquitetura e de seus desdobramentos urbanos. Aqui, considera-se esse o tema da instalação Rupestre (2017) de Marcius Galan, especialmente para Frestas. Nela, o próprio estacionamento torna-se objeto de análise e escrutínio físico e métrico pelo artista. Portanto, a condição assessória e funcional do lugar é invertida, dando-se a ele um protagonismo perante o espectador.

Nesse sentido, o espaço-lixo é identificável em todos os ambientes que percorremos, especialmente nos quais se vive e trabalha[3]. A arte hoje parece querer ressignificá-lo, torná-lo presente e encontrar nele a possibilidade de se pensar novas noções de futuro, tomando para si a tarefa de ressignificar e entender o que sempre permaneceu como velado. Negar, portanto, a noção de purificação e dar vazão ao entendimento do híbrido em suas mais diversas formas parece ser a tônica do debate público; tema nomeado por Bruno Latour, em meados dos anos 1990, em seu ensaio Jamais fomos modernos.

Presentes na exposição, o austríaco Marko Lulic e suas ações performativas encenadas e gravadas são exemplos contumazes de uma vontade de embate simbólico com a noção de pureza que está impregnada nos monumentos e edifícios modernistas. Atravessá-los, personificá-los, trazê-los para a escala do corpo parece ser um passo para desconstruir uma imagem ou lembrança estática em um ambiente capaz de nos responder de forma mais ativa denotando particularidades e histórias esquecidas, todas elas capazes eventualmente de oferecer janelas de entendimento do futuro. Do híbrido ao acontecimento, no limite entre o corpo e a arquitetura, parece haver uma resposta dissonante e antípoda à purificação. Yara Pina, por sua vez, leva a ação do corpo ao extremo, promovendo na destruição e, posteriormente, nos vestígios, encontrar formas de refundamento e transformação.

Enquanto sintoma de um tempo, assim como em Frestas, outras exposições e iniciativas recentes no circuito das artes, tanto aqui no Brasil como fora, especialmente em contextos das “modernidades periféricas”[4], têm apresentado de maneira ainda não sistemática um repertório considerável de artistas e obras que direta ou indiretamente percebem os espaços da experiência que se concebem por apropriações, resistências e invenções distintas do projeto estético e social hegemônico do ocidente – aquele ditado pelo projeto estético do modernismo.

Portanto, Sorocaba, cidade de importância basilar no desenvolvimento econômico e industrial brasileiro principalmente pela produção de café e têxtil, sofreu rápido crescimento no início do século deixando um lastro desenvolvimentista em seu espaço urbano e patrimônio material.  Se por um lado, foi criado o alicerce para uma experiência espacial moderna, por outro, deu-se às costas ao seu passado indígena. Desvelar essa negação de um passado, foi objeto de investigação de Fábio Tremonte, por intermédio das ações da Escola da Floresta, ao promover a leitura ao vivo do Relatório Figueredo.

Hoje, um outro ciclo econômico financista parece tomar conta dos modos de produção local, condenando mais uma vez o passado recente do município. Sendo assim, o projeto de Frestas tem importante papel cultural em alargar as possibilidades de diálogo com os vários tempos de seu passado, dando visibilidade à história que se escreveu nas margens de um circuito hegemônico e para o qual a arte que ali esteve e estará procura dialogar, encarando os impasses do presente para a construção objetiva de um porvir. Indiretamente, ao meu ver, o próprio sentido etimológico do termo “fresta” parece ser objeto de significação e interpretação pelo trabalho dialógico entre a curadoria proposta e as iniciativas dos artistas convidados; algo que já se vislumbrava desde a edição anterior de forma subjacente.

por DIEGO MATOS

 

[1] Três ensaios curtos de Bernard Tschumi, publicados originalmente na Artforum, entre 1980 e 1981, refletem sobre o tema “Arquitetura e limite”. As traduções podem ser encontradas no livro: NESBITT, Kate (org.). Uma Nova Agenda para a Arquitetura: Antologia Teórica (1965-1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006.

[2] Termo cunhado pelo arquiteto e teórico Rem Koolhaas por ocasião de seu ensaio Junkspace, em 2000. Sua tradução foi publicada em: SYKES, A. Krista (org.). O Campo Ampliado da Arquitetura: Antologia Teórica (1993-2009). São Paulo: Cosac Naify, 2013.

[3] Por ocasião do 20o Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em um programa público realizado no dia 11/11/2017, o autor do texto e co-curador do Festival promoveu um debate público no qual o professor e critico de arquitetura Guilherme Wisnik – convidado da mesa –  evocou a noção de Junkspace ao falar de uma outra face do espaço material e construído que se apresenta, resultante da corrida da modernidade.

[4] Toma-se emprestado o termo designado pela intelectual Beatriz Sarlo ao falar da modernidade cultural em Buenos Aires, Argentina, que, guardando as devidas proporções e particularidades, apresenta similitudes com o amplo projeto moderno brasileiro desde os anos 1930. Sua teoria critica atenta às complexidades e ambigüidades da modernidade oferece novas formas de análise e compreensão de um ambiente cultural distinto aos das grandes capitais do eixo Europa Ocidental e América do Norte.

 

Bruno Mendonça em Frestas: Trienal de Artes

 

Entrevista com Bruno Mendonça à crítica e pesquisadora Paola Fabres para o Ponto Digital, plataforma integrante da Trienal de Artes do SESC “Frestas – Entre Pós-Verdades e Acontecimentos”. A conversa partiu de sua performance “Onde está o que se o que está em porque” realizada no Sesc Sorocaba no dia 21 de outubro de 2017.

 

Paola Fabres: Teu trabalho tem transitado por diferentes circuitos, penetrando em espaços institucionais e alternativos. Em que medida esses diferentes espaços afetam a concepção e a construção do trabalho (ou também na própria relação que se estabelece com o público)? Que questões entraram em jogo ao desenhar esse projeto performático para o Frestas?

Bruno Mendonça: Bom, acho que é a primeira vez que tenho oportunidade de falar sobre meu trabalho dessa forma…

Esse trânsito por diferentes circuitos acredito que tenha se dado de uma forma muito natural, porque minha primeira formação não foi em Artes Visuais mas sim em Comunicação. No começo da faculdade, bem no começo mesmo, no primeiro semestre, eu passei num processo seletivo no MAM-SP para trabalhar na produção do Departamento Educativo. Neste momento, no próprio curso de Comunicação, eu já produzia algumas coisas, mais voltado à arte impressa, porque eu havia feito cursos técnicos nesta área antes da graduação. Eu produzia colagem, experimentações gráficas, muitos zines por conta da minha relação com a música independente da época que se utilizava desse dispositivo, além de escrever muito, sempre escrevi. A relação entre a palavra e a imagem sempre me interessou. Mas foi no MAM que comecei a adentrar esse sistema da arte. Por um lado foi bom, mas por outro me gerou uma grande crise, pois passei 4 anos pensando em mudar de curso, mas como eu era bolsista e fazia Iniciação Científica, acabei ficando… Aliás, a minha pesquisa de Iniciação Científica já tinha se voltado à relação entre palavra e imagem. Mas enfim, no contexto do MAM eu conheci muita gente…artistas, curadores, produtores e comecei a fazer trabalhos paralelos ao museu, como assistências para artistas e curadores, eu prestava trabalho para galerias, etc.

Demorou um tempo para eu entender a dinâmica do sistema das artes, mesmo estando profissionalmente imerso nele. Eu não era visto como artista ainda. Durante esse tempo eu mostrava meu trabalho em lugares alternativos, independentes ou que muitas vezes eram mais do establishment, não necessariamente das artes visuais, mas espaços voltados a música, moda, literatura. Foi depois da graduação que eu comecei a fazer cursos de extensão e especialização em Artes e que comecei a entender melhor meu trabalho e quais caminhos eram possíveis dentro desse sistema, desde salões, editais, espaços institucionais, até galerias… Também fui conhecendo os espaços independentes que foram muito importantes para a minha trajetória.

A questão é que toda esse rede de pessoas e lugares se mantém até hoje. Eu nunca hierarquizei nada e acho que, como meu trabalho sempre teve uma interface mais conceitual e foi cada vez mais caminhando para isso, nunca tive pretensões específicas, muito menos com a parte comercial, então, para mim, realizar uma performance no SESC ou num evento de música num espaço bem alternativo é a mesma coisa, o trabalho é o mesmo. Acho que por isso ele transita tanto por diferentes espaços. Encaro todos os “públicos” da mesma forma, embora respostas diferentes venham desses encontros. Claro que questões de infraestrutura e produção em termos gerais mudam, mas não que eu faça um grande espetáculo porque estou em um SESC que me disponibilize um palco italiano, enquanto que em um evento de garagem eu vá fazer outro tipo de trabalho. Como eu disse, o trabalho será o mesmo e ele é assim, simples. Na verdade, só preciso do microfone e pronto. Isso vem de um repertório punk, ou pós-punk, de ser direto.

Aliás, é importante falar num retrospecto sobre a prática da performance. A consciência conceitual sobre performance, no sentido de eu saber o que estava fazendo, ou pelo menos querendo fazer, veio do meu aprofundamento posterior no campo das Artes Visuais, ou seja, depois da graduação. Foi aí que fui conhecendo estilos, metodologias e tipologias da performance. Artistas importantes para mim como Laurie Anderson, Sue Tompkins, entre outros, surgiram aí e esses artistas criavam uma conexão para mim com background anterior, pois eles traziam em seus trabalhos elementos que me interessavam da música e da literatura. A descoberta do spoken word, abriu um guarda-chuva gigante e eu fui mergulhando nessas referências. No fundo acabei criando um trabalho de performance onde eu pude relacionar todas essas frentes que me interessavam.

Como hoje afirmo que todo o meu trabalho é texto, seja qual for a maneira que este se materialize, eu olho para trás e vejo que tudo foi um processo, um processo que faz sentido. Agora, sobre o que este texto fala? Acho que, na verdade, meu trabalho sempre falou em termos gerais de possíveis relações entre economia e subjetividade, e claro que a política entra aí nesse miolo. As abordagens e os recortes mudam, mas sempre vejo que no final acabo falando sobre questões econômicas. Aliás, até isso acredito que faça sentido na minha trajetória, o fato de eu ter atuado profissionalmente no mercado de arte não só como artista, mas ocupando cargos e funções que me possibilitaram ver por dentro da caixa preta. Acredito que me utilizo disso não apenas como um dos assuntos no meu trabalho, mas também como estratégia, consciência e potência…

PF: Em termos formais, é interessante perceber alguns aspectos presentes na tua ação performática realizada para a Trienal das Artes do Sesc Sorocaba. O eco reverbera a tua mensagem como numa vontade de ressonância, o idioma inglês dialoga com o grande sistema econômico o qual se questiona e os fragmentos de pensamento que vão aparecendo, falados e musicalizados, entram em sintonia com a tua própria multiplicidade como artista. Podemos perceber também falas pessoais, intimistas, que enfrentam quase que sem proporcionalidade à estrutura capitalista em pauta, cuja escala é tão maior. De que forma você enxerga a potência dessas individualidades? 

BM: Adorei essa pergunta. Que interessante que você percebeu essas coisas… Pois é, o eco e alguns efeitos de voz muitas vezes tem essa proposta de ressoar mesmo, ecoar a mensagem. Não é sempre que me utilizo disso, porque às vezes o cru também é interessante sonoramente falando. Mas eu pensei, sim, em utilizar esses tipos de delay e eco para a performance na Trienal porque, para mim, conceitualmente, fazia sentido por conta da materialidade dos textos que eu preparei para essa ação. Além disso, era uma forma de me relacionar com todas as camadas presentes na exposição, percebidas no espaço expositivo, no seu contexto ou nas relações mais conceituais e abstratas.

Sobre o inglês… Eu já fui muito criticado por utilizar o inglês nas performances. O uso dessa língua tem vários motivos. Primeiro porque minha mãe é linguista e é especializada em inglês, principalmente no estudo do uso da língua em contextos políticos e econômicos, então eu tenho uma relação com o idioma de uma forma quase materna. O outro motivo é que sempre que utilizo esta língua ativo um repertório muito pessoal e afetivo de referências que vem da música, do cinema, da literatura e por aí vai… Ao mesmo tempo, tem também esse uso crítico que você comenta. A mesma crítica que recebo de algumas pessoas pelo uso do inglês por conta de uma “colonização 2.0” e todas as problemáticas envolvidas nisso é a mesma crítica que faço a partir do uso da língua. É a crítica da crítica da crítica! É normal, qualquer trabalho está sujeito a isso. Mas às vezes acho que o uso da língua como crítica não é percebido como você observou.

Agora, sobre o caráter de fragmentação do trabalho a partir dessas diferentes formas de vocalização, isso tem a ver com a questão dessa multiplicidade enquanto indivíduo, por vezes um indivíduo quase esquizo mesmo… Essa postura cambiante me interessa, algo que fica entre a palestra, o manifesto, o poema, a canção, o show. Os textos, ao serem escritos, já são pensados dessa forma. Esses diversos personagens, papéis e indivíduos que os diferentes textos e suas respectivas estruturas e vocalizações suscitam me interessam muito. Ou seja, me interessa quando a performance se configura quase como uma “palestra”, evocando a figura do professor e logo do crítico, do curador – que são estados que eu habito de vez em quando. Em seguida, vem também o artista, mais melancólico, debochado, muitas vezes nervoso, que é quando me sinto mais nu de fato, porém posso botar a armadura epistemológica em segundos… O trabalho é assim, tem essas diferentes temperaturas.

Agora para finalizar respondendo a última parte da pergunta, assim como falei anteriormente, sim, tudo gira em torno dessa relação entre macro e micropolítica e em torno do estratagema econômico como um fator de afetação do corpo, do indivíduo e de sua subjetividade.

PF: Você comenta que reconhece a ocorrência da fragmentação dos papéis – no caso do artista – como uma decorrência do capitalismo e da forma como ele formata nossos direitos e identidades. Estou bastante de acordo. Mas há também uma questão referente ao próprio campo da arte que demanda uma multiplicidade de seus agentes por conta da precarização profissional. Como neutralizar esse sintoma de carências e fazer com que a multiplicidade torne-se a escolha e não a necessidade?

BM: Bom, aí acho que teremos que analisar por contexto. Se pensarmos no Brasil isso é extremamente complexo. Aqui essa precarização que você fala, e que é real, realmente cobra dos artistas uma fragmentação de papéis e uma multiplicidade enquanto agentes, muito mais por uma questão de necessidade do que por escolha. Acho que nesse sentido meu trabalho se relaciona muito com a nossa realidade local. Embora, se analisarmos contextos com processos econômicos, políticos, sociais e culturais parecidos com o nosso, como é o caso da América Latina e Central, do Leste Europeu, entre outros, veremos que acontece o mesmo. Neste caso essa fragmentação de papéis e essa multiplicidade do artista enquanto agente como escolha é totalmente diferente e possível em países que tem uma outra realidade. Inclusive isso é a temática de alguns artistas, principalmente deste eixo norte-americano ou centro-europeu, que se utilizam dessa escolha de modus operandi não mais como uma forma de sobrevivência mas como um dado conceitual. Aqui no Brasil, por exemplo, as duas coisas andam juntas, sobrevivência e conceito, ou seja, ação e discurso.

PF: A ideia de Ricardo Basbaum sobre o “artista-etc” traz como definição “o artista que questiona a natureza e função do seu papel”. Essa não deveria ser uma atenção de todo artista? Como tu achas que a utilização desse conceito pode vir a ajudar na construção de vocabulário voltado ao campo sem utilizá-lo como categoria de valor?

BM: Bom, a teoria do Basbaum e todos os textos que envolvem essa reflexão foram de extrema importância para mim. Eu continuo lendo, relendo, atualizando, reconectando com outras teorias, bibliografias recentes, enfim… Ainda bem que ele resolveu fazer um manual, assim todos os artistas e outros podem usar isso como ferramenta! Eu sempre entendi esse conceito como ferramenta, mas agora está dado. “O artista que questiona a natureza e função do seu papel”… claro que isso deveria ser uma posição geral, mas de fato não é!

As artes visuais é uma das classes artísticas mais acomodadas que eu vejo e acho que isso se dá por várias razões, uma delas talvez seja o fato de que a relação entre investimento público e privado neste setor é muito estranha. Além disso, nossa classe movimenta um sistema comercial específico, o que resulta em um nicho diferenciado se pensarmos em relação ao pessoal do teatro, da dança, etc. Acho que esse namoro com uma ideia de commodity de uma forma mais direta gera consequentemente uma postura mais frouxa por parte de alguns artistas, menos reflexiva, pois muitos se sentem protegidos por determinadas estruturas desse sistema, o que é um grande engano. Isso é muito comum e às vezes acontece de forma inconsciente… Na verdade essa postura muitas vezes despolitizada e menos autocrítica do setor faz com que sejamos um grupo desunido, muito individualizado, com pautas que não se cruzam e muitas vezes com realidades tão distintas que são abissais.

Agora sobre a questão do “artista-etc” como categoria de valor, não sei se entendi isso. O que vem acontecendo é que artistas que tem atuações cheias de hífen em seus currículos tem de fato ganhado mais destaque principalmente no circuito institucional, ou seja, artistas-ativistas, artistas-pesquisadores, artistas-educadores, artistas-designers e por aí vai. Essas atuações transdisciplinares e múltiplas tem tido um determinado lugar. Mas é importante prestar atenção inclusive sobre este “lugar” conquistado. Isso vem como decorrência de uma série de processos. Como o atual sistema econômico é extremamente veloz e rapidamente copta tudo e joga para dentro de sua máquina, é preciso então prestar atenção se esse “tipo de artista”, “o etc”, já virou uma categoria, se isso já é recorrente ou, pior, se isso já virou uma categoria de valor. Nesse caso, talvez tenhamos um problema maior ainda. Eu tenho pensado muito sobre essas coisas, inclusive por conta da atenção que ganhei com o meu trabalho nos últimos anos… Ao mesmo tempo que tenho me utilizado disso a meu favor, tenho prestado atenção para não ser uma espécie de toupeira, é melhor ser um ornitorrinco…

Arte totêmica em Zé Carlos Garcia e Daniel Lie: epistemologias da transmutação e não da repetição

 

“Esta onipresença da ave, pondo sobre os espantos da selva o signo da asa, faz-me pensar na transcendência e pluralidade dos papéis desempenhados pelo Pássaro nas mitologias deste mundo […] Mas os conhecia através do verniz das pinacotecas, como testemunho de um passado morto, sem recuperação possível.”

Alejo Carpentier em “Os passos perdidos”.

 

Tenho por certo que o lugar do Paradoxo é onde se encontram as possibilidades latentes de novos modos de existir. Situação histórica em que paira sufocante uma sensação de encurralamento. Nesse espaço-tempo, condensado de presentes e passados, desastrosos e hostis, as formas tornam-se frouxas e desenvolvem uma polivalência que em um só tempo podem descambar para uma iluminação completa ou trevas ainda mais profundas. É nesse particular momento em que soam urgentes as fabulações e as invenções como exercícios práticos e simbólicos de ser e estar no mundo. As artes enquanto campo aberto das imaginações são as pontas de lança que abrem fendas para um novo por vir. Não à toa, em tempos opressores, que tornam impossíveis os modos de vidas plurais, as artes precisam estar em avant-guard. Ser as guardas que vão à frente abrindo caminhos, desfazendo trincheiras, vivendo as primeiras e mais fortes violências em nome de ideias e presenças que marcam mudanças revolucionárias.

Tais revoluções só são possíveis diante das elaborações de novos vocabulários estéticos que são em si uma abertura para novas formas de ser e estar no mundo. É nesse lugar que o experimental conduz as sensibilidades  para fora do que está dado e, nesse sentido, os pulmões podem ensaiar novos fôlegos ao invés do sufoco. Os artistas Zé Carlos Garcia e Daniel Lie são produtores desses tipos de experiências em que se é preciso criar asas e alçar voos para além da constatação das realidades que oprimem. Há em ambos uma qualidade de dar às formas uma frouxidão nos significados triviais e que com os significantes atormentados por uma alquimia poética evocam novos corpos, novas sensibilidades, novos entendimentos, novos verbos ansiosos para se conjugarem.

Ainda que atinjam em cheio nosso estado anímico, as experiências que propõem começam no corpo encarnado cujo estado-matéria precisa elaborar uma dança por entre os objetos/instalações que instauram ‘campos estésicos’. Garcia nos faz mais acerca à encarnação de sabedorias das faunas, enquanto que Lie nos leva a uma reinvenção de si  nos processos cíclicos e de transmutação guardados nas veias das floras. De modos diversos e contundentes em campos semânticos próprios, Garcia-Lie se tocam e fecham um ciclo totêmico cuja potência mágica é a da (re)criação. Que em tempos sombrios como esses, salvaguardam nosso filão atávico de sobrevivência. Essa mera mudança de paradigma põe em xeque uma série de preconceitos que convém denunciar nesses tempos atuais de discursos de ódio e violência de bases fundamentalistas.

O que se passa hoje é reflexo de uma construção cientificista de lidar com as coisas do mundo que estreita as possibilidades de leitura dos acontecimentos históricos. Pois, elegeu apenas uma epistemologia hegemônica da qual decorreu seu respectivo modo de contar a história em detrimento de múltiplas narrativas possíveis. Essa eleição de uma única mirada sobre os fenômenos da vida na Terra, que privilegiou os olhos como canal de percepção e a razão como única criadora de significados, estabeleceu relações de poder desequilibradas: economias, políticas e desenvolvimento socioambientais em completas disfunções porque alicerçados em hierarquias hegemônicas. Baseado em “Ficções de Superioridade”, o mundo Ocidental se organizou – e pensa organizar todo resto. E no que deveria ser uma Comunidade Global igualitária, tem-se uma estrutura opressora que naturaliza as ficções de que uma cultura é superior a outras, um grupo étnico é superior aos outros, que a espécie humana é superior às demais espécies da natureza, que um conhecimento científico moderno é superior às sabedorias milenares etc.

Esse modo unilateral e ‘monocromático’ de construção de mundo mantém-se replicado nos modos de construção de conhecimento. Vivemos, atualmente, um completo esgotamento das formas de criação que traz também um esgotamento dos modos de vida e, nessa direção, surge um ‘looping’ monótono de uma existência parcimoniosa, sem novidades. Voltados para mera reprodução de discursos, os campos de conhecimento humano encontram-se estreitados pela falta de imaginação – essa que é a faculdade humana capaz de produzir futuros inacreditáveis.

Mas há um número considerável de artistas que preferem a constatação da opressão no lugar de transcendê-las, e o fazem de modo repetitivo, empregando formas usadas no passado cujo propósito de reinvenção cumpriu sua jornada histórica. Repetem meros dispositivos e não proposições existenciais, a saber: mapas, bandeiras, frases de ordem, trabalhos de outros artistas reiterando uma obviedade dada em cada forma de vida oprimida nas ruas. Parte da classe média em sua condição raquítica de pensamento celebra essas formas-ocas como expiação de suas culpas. Entre festas, viagens e prêmios vai-se reificando a parcimônia enquanto modo de vida.

Ainda que uns pensem que as formas plurais de existir estão sendo aniquiladas pelo fascismo – modo claro de autoengano – o que tem ameaçado nossa vida na Terra é a monotonia. O esgotamento das formas de viver. A humanidade está ameaçada por repetir-se. Seremos extintos pelo tédio.

 

por ANA LUISA LIMA

Réquiem para os invisíveis

Na sala escura, vozes. Dizem coisas que nossa compreensão não alcança. Invisíveis que são, assim se apresentam diante de nós: são suas não-imagens que nos confrontam. A negação da identificação imagética amplifica o som dos fragmentos capturados por Susan Hiller em The Last Silent Movie (O último filme mudo). Perante a quase morte das falas que se repetem, é a indiferença que grita.


A descolonização do olhar

As vozes de Susan Hiller não constroem discursos, mas perfuram convicções. Sua obra recusa a espetacularização da tragédia ali anunciada e a utilização de visualidades estandarizadas. Constantemente iludidos pelas promessas midiáticas de alcançar e decifrar qualquer realidade por meio de imagens enlatadas, como reagimos diante um dispositivo que nos nega narrativas audiovisuais prontas para o consumo? Deslocados do centro do mundo, somos convidados a testemunhar, de forma sensível, línguas à beira do silêncio. Frente à iminência da aniquilação de um dialeto e tudo que carrega consigo – sua cosmovisão, sua potência, encaramos nosso abismo: incapazes de tocar a fronteira do outro, é nossa própria finitude que enxergamos ali.


A língua desencarnada é muito pior do que um fantasma porque nem mesmo assombra. É o que sinto quando repito a palavra “etnocídio”. Como explicar que a morte cultural é a morte daquilo que um povo é, a morte de um ser e de um estar no mundo totalmente singular, é a morte que precede a extinção física, porque a cultura é o que dá sentido às batidas de um coração humano.

Eliane Brum, em coluna para o El Pais

Cartografia do esquecimento

Se o sistema Raposo-Castelo é o caminho que hoje nos leva a Sorocaba, reconhecemos, sob o asfalto, as trilhas rasgadas por quem aqui estava antes do Brasil tornar-se Brasil. Para invadir o território, os colonizadores tomaram de assalto o Peabiru: além do ouro, saquearam também os saberes dos povos nativos, abrindo o caminho para o domínio europeu. Na epopeia sorocabana, Baltazar Fernandes é herói. Sua imagem se ergue diante do Mosteiro de São Bento, fundado por doação de sesmaria à Ordem Beneditina pelo notável bandeirante em 1660. Além da fundação da cidade, consta entre seus feitos a subjugação de centenas de indígenas, escravizados e solenemente apagados da saga épica paulista. Em Um Vazio Pleno, Maria Thereza Alves abre uma fresta no tempo e no espaço: aos pés do monumento e em outros locais da cidade, deposita réplicas de artefatos indígenas como urnas funerárias e moringas, reproduzidas pelo ceramista guarani Maximino Rodrigues. Como no conceito proposto por Lygia Clark, o vazio pleno de Maria Thereza é lugar de gestação: por meio de uma série de ações colaborativas articuladas pela artista, Maria Thereza reinscreve a presença indígena no espaço público e no imaginário local. Sua obra é uma arqueologia do futuro: trazidas à superfície, as urnas são um um rito para um povo que resiste. Assim como as vozes de Susan Hiller, os Guarani encaram o abismo. Falta a eles Tekoha – o lugar onde se é.




Maria Thereza Alves durante fala em frente ao Mosteiro São Bento, acompanhada por Eunice Martim e Poty Poran.



O inferno são os outros?

A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa. Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe. Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger. Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemias que nos devoram. Não conseguirão mais conter os seres maléficos, que transformarão a floresta num caos. Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós. Todos os xamãs vão acabar morrendo. Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar.

Davi Kopenawa, em A Queda do Céu

Expulsos do Pindorama, somos o Povo-Novo de Darcy Ribeiro. Se foram as trocas de bugigangas por ouro e prata as primeiras estratégias de subtração da América, Davi Kopenawa recusa o escambo e nos devolve o espelho em  A Queda do Céu. No livro, o ativista e xamã yanomami nos faz mirar um reflexo de difícil digestão: somos o povo da mercadoria, uma civilização tola que valoriza o ter em detrimento do ser. Se o Manifesto Antropófago era a resposta dos modernistas diante da invasão europeia, hoje já não sabemos quem somos. Em 2017, quem devora quem? Acostumados a reduzir à índio qualquer outro que não obedeça à ordem do lucro e da acumulação, somos napë, inimigos. Somos nós o outro, os canibais que vieram comer a terra dos Yanomami depois de terem devorado a sua própria. Diante dos sinais da insustentabilidade do capitalismo, seguimos marchando em direção ao Antropoceno – a partir de nossa pretensão autocentrada, tornamo-nos até força geológica. Alienados da cosmologia yanomami e de tantas outras já silenciadas pela mão do homem branco, cumprimos desavisados a profecia xamânica.


O desastre objetivo nos serve, antes de mais nada, para mascarar uma outra devastação, ainda mais evidente e ainda mais massiva. O esgotamento dos recursos naturais provavelmente está muito menos avançado do que o esgotamento dos recursos subjetivos, dos recursos vitais que atinge nossos contemporâneos. Se nos satisfazemos tanto ao detalhar a devastação do ambiente, é também para cobrir a assustadora ruína das interioridades. Cada maré negra, cada planície estéril, cada extinção de espécies é uma imagem das almas em farrapos, um reflexo da nossa ausência do mundo, da nossa impotência íntima para habitá-lo.

Comitê InvisívelAos nossos amigos : crise e insurreição

Sobre nosso silêncio ensurdecedor

Hannah Arendt alcançou “a banalidade do mal” ao testemunhar, em Jerusalém, o julgamento do nazista Adolf Eichmann. Ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões, Eichmann não era movido pelo ódio, era apenas um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. É na ausência de pensamento que a banalidade do mal se instala: conformados pela nossa ideia de progresso e desenvolvimento, permanecemos em silêncio diante do etnocídio em curso em terras brasileiras. A Constituição atribui ao Estado o dever de demarcar terras indígenas, destinadas à sobrevivência dos povos originários. Para o agronegócio, a prerrogativa é um entrave para o desenvolvimento do país. É sob este argumento que a sombra do totalitarismo se projeta: articulado no Congresso pela bancada ruralista e concretizado em campo por violentos conflitos, o extermínio segue. Pela promessa de segurança hídrica e energética, concordamos que o Estado financie obras como a transposição do Rio São Francisco e a construção de Belo Monte, numa perigosa mistura entre público e privado, enquanto reserva à população políticas de austeridade. A quem interessa este desenvolvimentismo acrítico? É possível definir pós-colonialismo num território que permanece aberto à exploração estrangeira, capitaneada pelas grandes corporações? Para muitos, 1500 ainda não acabou.


O que é necessário opor aos planos de austeridade é uma “outra ideia de vida”, que consista, por exemplo, em partilhar em vez de economizar, em conversar em vez de calar, em lutar em vez de sofrer, em celebrar as vitórias em vez de invalidá-las, em se aproximar em vez de manter distância. Não é possível, por exemplo, medir o tamanho da força que os movimentos indígenas do subcontinente americano ganharam ao assumir o “buen vivir” como afirmação política. Isso traça, por um lado, um claro perfil daquilo pelo que é contra o que se luta; e, por outro, abre a porta para a descoberta serena das mil outras formas de entendimento da “boa vida”, formas que, apesar de diferentes, não são inimigas, pelo menos não necessariamente.

Comitê InvisívelAos nossos amigos : crise e insurreição

Resistir ou Re-existir

É possível experimentar outras formas de existir? E se ousássemos pensar numa existência que não estivesse subordinada a uma finalidade como o progresso, a competência ou o dinheiro, como provoca Peter Pal Pélbart? Para além do debate sobre a questão indígena, é a disposição para a alteridade, a capacidade de encontrar e acolher perspectivas que não obedeçam a nossa lógica que nos é solicitada. A escuta é necessária, antes que o silêncio desabe sobre nós. É tempo de descolonizar o pensamento.


Escrito por:

Aline de Castro

Estruturas rígidas tencionam estruturas simbólicas

 

Como, frente ao momento crítico que estamos vivendo, as artes visuais e suas instituições podem participar e ampliar o debate público? Como, desde o campo estético, efetivamente contribuir para a discussão política? Como, considerando a autonomia e a especificidade da arte, pensar estratégias discursivas e plástico-visuais capazes de confrontar os conteúdos e fatos amplamente comercializados nos mercados da pós-verdade e do fakenews? Como ultrapassar o nicho de mercado “arte política”, valorizado no colecionismo privado, amplamente explorado por galerias, instituições culturais e muitas vezes esvaziados nas reflexões de críticos e curadores? Como lidar com os desafios da representação política em um mundo marcado pela excessiva circulação, banalização e consumo de imagens? Como tratar do fato social cotidiano e vulgar sem abrir mão da autonomia e especificidade do campo?

Esses são alguns dos dilemas enfrentados por inúmeras obras presentes na segunda edição da Trienal de Artes. Dentre as quais destacamos um conjunto – desenvolvido por artistas de diferentes gerações a partir dos anos 2000 – que, despido do caráter panfletário e das amarras programáticas-ideológicas, dos apelos midiáticos de entretenimento e das estratégias espetaculares do choque e da denúncia, suscitam, desde uma forma de conhecimento específico e a partir de suas particularidades, reflexões e diálogos entre arte, arquitetura e política.

Sem cair nas armadilhas da simples negação ou da positividade, o artista cubano Diango Hernández articula de maneira complexa as improváveis relações que o design, na falta de um mercado de consumo, estabelece com a república socialista de Cuba e seus cidadãos. A precariedade material, tecnológica e econômica que assola o país e sua população, levando-os a lançar mão de toda sorte de improvisos, arranjos, reaproveitamento e engenhocas, é sintetizada em obras produzidas com base em uma estética da gambiarra. Caso de Leg me, Chair me, Love me (2010), uma cadeira que por meio de uma engenhoca criada pelo artista, é impossibilitada de manter, simultaneamente, suas qualidades formais e propriedades funcionais, oscilando entre um mero objeto escultórico – quando perde momentaneamente seu caráter funcional – e um mero objeto funcional – no qual o remendo e a carência comprometem a excelência formal de um objeto de design. No entanto, como nos sugere Hernández com seu dinâmico jogo instalativo, a ideia de precariedade pode ser adulterada a partir da perspectiva e do ponto de vista. A construção de objetos com base no improviso e a partir de recursos limitados nos trabalhos de Hernández associa as artes visuais à arquitetura (ao design) e à realidade socioeconômica dos cubanos que, na tentativa de escapar da escassez material, financeira e tecnológica, lançam mão da força criativa e conseguem, muito embora de maneira provisória, transformar a realidade que os cercam.

O artista Bruno Baptistelli, por sua vez, apresenta em Frestas rampas de acesso, corrimãos e pequenos degraus, que destacados do complexo arquitetônico do Sesc Sorocaba, perdem sua funcionalidade e se assumem, exclusivamente, como formas no espaço. Essas peças, pelo despojamento e força de seus elementos estruturais, se por um lado remetem à radicalidade do brutalismo[1], por outro, a verossimilhança formal que essas peças estabelecem com a arquitetura acabam por gerar um desconforto que nos ajuda a visualizar o caráter ambíguo das formas e estruturas arquitetônicas que tanto podem impedir, restringir e excluir como podem facilitar os acessos e usos dos espaços urbanos.

O debate sobre o potencial disciplinador e regulador da arquitetura, da sua interferência no livre uso da cidade e de seus espaços, também está presente na obra Oeste ou até onde o sol pode alcançar (2006) de André Komatsu. No vídeo, o artista se propõe a acompanhar o nascer-pôr do sol, cruzando a cidade de São Paulo de leste a oeste. Nesse percurso se depara com diversos mecanismos, funcionalidades urbanísticas e arquitetônicas de exclusão e restrição que forçam uma alteração, quando não o abandono, da rota originalmente traçada. As sucessivas reformulações de percursos, o confronto literal do corpo do artista com edificações, com sinalizações de orientação, com o desenho urbanístico da cidade e demais impedimentos encontrados pelo trajeto, evidenciam o potencial da arquitetura em interferir no modo de existir e de se relacionar na e com a cidade, suscitando ainda um debate sobre o espaço do comum e sobre o direto a ela mesma. Ainda, vale destacar que esse direito à cidade vem sendo reconfigurado e atualizado diante do programa de desestatização da cidade de São Paulo e do amplo pacote de concessões de seus espaços públicos à empresas privadas que a atual gestão municipal vem empreendendo como uma de suas principais vertentes de atuação.

Em Memorándum [Memorando] (2017) o artista Héctor Zamora constrói, a partir de uma sustentação de andaimes, uma estação retro-futurista de trabalho na qual a estrutura metálica reluzente é confrontada e ocupada pelo complexo mulher-máquina de escrever em uma desumanização que, como propõe Paola Fabres, “confunde a linha de montagem de produto com a do próprio trabalhador”. Nesse trabalho um dos grandes protagonistas é, sem dúvidas, a arquitetura. As austeras estruturas metálicas, na justa adequação da forma à função a que se destinam, produzem uma guarida no limiar da opressão. Tanto disciplinam, a partir dos vários pavimentos, como possibilitam devido sua estrutura vazada o controle e a observação dos corpos-máquinas que, para maior produtividade, guardam entre si apenas a distancia necessária a se evitar distrações decorrentes de interações. Nesse trabalho é possível entrever um debate acerca das contribuições da arquitetura em projetos de controle e exploração da máxima eficiência e produtividade de corpos no ambiente corporativo. Tais atributos evidenciam a manutenção da mais-valia como base da exploração da classe trabalhadora e de princípios da racionalização fordista na contemporaneidade.

[1]Para uma definição ver:  http://www.arquiteturabrutalista.com.br/index1port-conceitos.htm

 

por FABRÍCIA JORDÃO

Em série

Enfileiradas, caminham até seus postos. Atravessam o dia, em ritmo automático-fordista, confundindo a linha de montagem de produto com a do próprio trabalhador. O ângulo captado pelo artista foge do close, dribla as expressões – ou talvez nem houvessem expressões a serem captadas. Afinal de contas, a despersonalização está por tudo, nas roupas, na serialidade, na homogeneização da massa. Toda essa dessubjetivação contagia a assepsia do galpão.

Mas há uma potência visual em meio a toda esse regramento. Há uma estética que nos seduz, que nos ilude: um sistema que nos lubridia na sua astúcia. A diagramação das economias e das coisas alcança sua ordem e encanto para encobrir suas entranhas.

Memorándum, palavra de origem latina, acarreta um caráter oficial e protocolar, fazendo menção ao termo utilizado pelas autoridades sobre assuntos de interesse público. Assim, temos aí uma homenagem implícita à esfera social trabalhadora – traço recorrente na produção de Héctor Zamora –, ao mesmo tempo em que se percebe a crítica às condutas mecânicas, consequentes da imposição de um modelo capitalista que apaga a humanização desses corpos femininos. Esses mesmos corpos, invisibilizados pela sua estandardização, são ali motores de energia e produção. São, portanto, dignos de memória.

por PAOLA FABRES

Territórios Contínuos em Permanência

Bienais, trienais, feiras e grandes exposições, como bem sabemos, tornaram-se modelos recorrentes e proliferados. A esfera etérea e subjetiva da arte flertou faz tempo com a indústria cultural, o que deu margem a esse formato do big-evento. O Brasil, de certa forma, é precursor nesse processo, já que inaugurou a segunda bienal da esfera global com a de São Paulo (1951), vindo atrás apenas da tradicional Bienal de Veneza (de 1895). Mas é pelas décadas de 80 e principalmente a de 90 que essa configuração do grande evento vai replicando-se pelas várias geografias e se adaptando às diferentes conjunturas culturais, ocupando as regiões centrais e seus arredores.

A grande exposição traz junto com ela o volume de obras e nomes, o levante de temas de debate, o impacto – seja esse qual for – e não podemos esquecer, também, o alto custo. Então, provoco: para que? Para que o esforço, a logística, a estrutura e a mobilização? Por que não alocar recursos direcionados para os pontos de vulnerabilidade que tão bem podemos reconhecer no nosso cenário atual? Por que não canalizar fundos e energias para o extrato social mais suscetível ou por que não pensarmos em respostas poéticas que solucionem, de fato, nossas carências de maneira mais prática e funcional? Entramos aqui na questão sobre a funcionalidade da arte. Questão tão cara, tão debatida, cujas conclusões são tão pouco unívocas.

Nossos estímulos, quase sempre, visam finalidades. Movemo-nos pela sensatez e pela eficácia imediata, mas nem todo resultado é quantificado de forma palpável. A prática artística carrega consigo outras potências, menos objetivas ou pragmáticas. O objeto simbólico traz outra serventia, nem o remendo, nem o ajuste, mas a formação do olhar. A geração de criticidade, nesse caso, sobrepõe-se à ação. Assim, estamos lidando com práticas sensíveis nada resolutivas que não buscam o discurso paternalista, nem funcionam sob a lógica do assistencialismo. Se assim fosse, perderiam sua capacidade de reverberação. Se debilitariam de sua faculdade de contemplar outros tempos e outros espaços através de um argumento que atua como ponto de partida. Não conseguiriam aproximar os diferentes a partir do mesmo problema. Se resolvessem falhas pontuais, reparando os furos mais perto de nós – que tanto precisam de amparo – deixariam de abraçar as tantas outras fissuras que não estão ao nosso alcance, perdendo sua rara capacidade de tratar de aspectos específicos para abranger planos gerais. Seu mote toca a formação. Uma formação, claro, de outro tipo, como sempre nada súbita, mas que junta o simbólico e o afetivo à cognição.

À arte, a resposta não lhe pertence, sua gramática é a indagação.

Bienais ou trienais comprometem-se com a continuidade. De certa maneira, apresentam-se como esse big-evento que mais do que estruturas de entretenimento cultural, mais do que dispositivos que permitem a apresentação de artistas e proposições para diferentes grupos sociais ou mais do que plataformas que possibilitam o fomento e a divulgação da produção do campo artístico, tratam-se de programações que incitam a dúvida e o estranhamento – matérias e narrativas de uma outra ordem – para deles extrairmos a reflexão. Prometem um debate seguido, ainda que as discussões mudem de nome ou forma. Seu maior e principal desafio é tornar-se contínua, não no que diz respeito a sucessão de suas próximas edições, mas sobrevivente nos próprios interstícios, entre uma e a outra. Como garantir a permanência do questionamento nos intervalos que perpassam esses períodos? Como evitar que o término de um evento encerre junto com ele todo o rumor que criou ou todo o eco que gerou? Não deve ser uma conformação de teatro italiano. Não deve ser este palco cênico que abre e fecha suas cortinas, que pede vaias ou aplausos e apaga a luz no fim do dia. O objeto simbólico demanda o pensamento e ele pode ser contínuo. A questão é entendermos como fazer essa continuidade tornar-se permanente.

Escrito por:

Paola Fabres

Ações e Extinções

Jardim Botânico de Sorocaba, Brasil.
A arte pode colocar a natureza em risco?
A ironia acontece todos os dias. Imburana, espécie de árvore em extinção, vem sendo transformada em objetos artísticos e artesanais como carrancas, esculturas, imagens de santos e matrizes para xilogravuras. Turistas encantados e, talvez também desavisados, acabam colaborando com um processo de degradação do meio ambiente.
Seu tronco é especialmente procurado pelas abelhas que criam suas colmeias na parte interna das árvores. Com a derrubada ilegal, todo o ecossistema do sertão do Brasil, da América do Sul (do Peru à Argentina) e especialmente do sudoeste da Floresta Amazônica, acaba prejudicado.
De posse desta informação, a preocupação também passou a ser dos apicultores, pesquisadores e artesãos, que acreditam que o tombamento seria uma solução para inibir a derrubada.
Edson Barros, artista participante da segunda edição do Frestas, também faz uso da Imburana na constituição de seus trabalhos. Talvez você esteja se perguntando porque uma Trienal de Artes possibilita interferências em locais onde menos deveríamos intervir: na natureza em seu estado pleno. Mas aqui, no Jardim Botânico da cidade de Sorocaba, local escolhido por Edson, a ação proposta é diferente. Ao invés de corroborar a extinção, o plantio da árvore vira proposição de obra de arte, garantindo, pelo menos aqui, sua permanência por mais tempo. Obra viva, em constante crescimento, literalmente. Trata-se, então, do caminho inverso: da arte sendo devolvida à natureza.


“É importante aproximar a arte das questões ambientais, tornar o problema visual. Apontar para além, mostrar essas obras faraônicas que degradam o ambiente e a falta de política ambiental.”

Edson Barrus

No momento em que o ato de plantar uma muda, em meio a uma trienal, passa a ser um ato de provocação sobre o debate, lembramo-nos que a arte, por vezes, cumpre o papel de lançar questões e de germinar consciências.

Escrito por:

Danilo Silva