Em série

Enfileiradas, caminham até seus postos. Atravessam o dia, em ritmo automático-fordista, confundindo a linha de montagem de produto com a do próprio trabalhador. O ângulo captado pelo artista foge do close, dribla as expressões – ou talvez nem houvessem expressões a serem captadas. Afinal de contas, a despersonalização está por tudo, nas roupas, na serialidade, na homogeneização da massa. Toda essa dessubjetivação contagia a assepsia do galpão.

Mas há uma potência visual em meio a toda esse regramento. Há uma estética que nos seduz, que nos ilude: um sistema que nos lubridia na sua astúcia. A diagramação das economias e das coisas alcança sua ordem e encanto para encobrir suas entranhas.

Memorándum, palavra de origem latina, acarreta um caráter oficial e protocolar, fazendo menção ao termo utilizado pelas autoridades sobre assuntos de interesse público. Assim, temos aí uma homenagem implícita à esfera social trabalhadora – traço recorrente na produção de Héctor Zamora –, ao mesmo tempo em que se percebe a crítica às condutas mecânicas, consequentes da imposição de um modelo capitalista que apaga a humanização desses corpos femininos. Esses mesmos corpos, invisibilizados pela sua estandardização, são ali motores de energia e produção. São, portanto, dignos de memória.

por PAOLA FABRES

Uma prisão é uma prisão

No filme F for Fake, de Orson Welles, ante a prisão iminente, o famoso pintor e falsificador de obras de arte Elmyr de Hory afirmou: Estar em uma prisão aqui, eu diria, é melhor do que em qualquer outro lugar. Mas uma prisão é uma prisão. Enfrentemos. O lugar ao qual de Hory se referia era a ilha de Ibiza, situada no arquipélago das Ilhas Baleares, banhada pelo Mar Mediterrâneo, localizada na costa leste da Península Ibérica. Nesta ilha, ameaçado de extradição, o pintor, que tinha chegado seduzido pela beleza e pela tranquilidade do lugar, cometeu suicídio em 11 de dezembro de 1976.

O boom do turismo em Ibiza veio com os anos 60 e 70 no século passado. O processo da relativa abertura política da última etapa da ditadura, a inauguração do aeroporto da ilha e a desvalorização da moeda atrairam em princípio milhares de cidadãos britânicos, tornando Ibiza, imediatamente, um lugar imperdível para a comunidade hippie. Os artistas e intelectuais que escolheram a ilha na década de 1950 como um refúgio idílico começaram a abandoná-la frente ao desaparecimento de sua tranquilidade que abria espaço a um enorme afluxo de visitantes ansiosos pela vida noturna.

O fenômeno de surgimento das casas noturnas já havia começado no final dos anos 60, ainda que tivesse um desenvolvimento especial na década de 80 e, variando seus formatos, se estende até o presente. Irene de Andrés começou em 2011 Onde nada acontece, um projeto de longa distância que coexiste com o desenvolvimento de outras obras. A atividade das discotecas que a artista documentou passa por nomes tão sugestivos como Idea, Festival Club, Heaven, Toro Mar ou Glory, que tem dado título a cada um desses episódios e supõe um estudo detalhado dessa vida noturna em que a ilha baseou sua economia nas últimas décadas.

Como assimilar o conceito de turismo quando se nasce em um local oferecido como destino idílico pelas agências de viagens? O trabalho de Irene de Andrés aprofunda a análise detalhada da representação do ideal e da configuração de uma imagem padronizada do que todos devemos entender como um destino arquetípico: um lugar onde desconectamos do ambiente odioso no qual permanecemos o resto do ano.

Residente em Madrid desde 2004, Irene de Andrés viaja para Ibiza, geralmente, para regressar ao seu lugar de origem, enfrentando uma viagem na direção oposta que ativa a memória do seu passado. A relação com esse destino de férias é, em seu caso, simplesmente um retorno à casa da família e Onde nada acontece foi criado a partir dessas visitas específicas, trazendo uma linha fina entre a vida diária dos habitantes da ilha e o uso desses espaços de lazer projetado inicialmente para o turismo.

A maneira pela qual Irene de Andrés aborda seu trabalho passa por um registro documental em que são inseridos uma série de ficções que reativam a ruína que enfrentamos. Então, lançar uma edição especial do Diario de Ibiza em que cada uma das notícias se referem a aberturas, fechamentos, publicidade e incidentes que ocorreram nesses espaços coexiste com a introdução de maquetes, objetos resgatados dos entulhos ou a introdução de uma bola de espelhos que fala sobre a chegada do laser aos salões de baile da ilha através de um desses clubes que podem ser vistos em Heaven, o terceiro capítulo deste projecto incluído na segunda edição do Frestas – Trienal de Arte.

“Donde nada ocurre entremezcla la realidad y la ficción como gesto simbólico que alude a esa cultura de la desconexión transitoria, de la esencial falta de acontecimientos en contraposición a una actividad incesante que en realidad ha vaciado el lugar

Onde nada acontece mistura realidade e ficção como um gesto simbólico que alude à cultura da desconexão transitória, da falta essencial de acontecimentos em oposição a uma atividade incessante que acaba esvaziando o lugar. Ao mesmo tempo, trata do uso de um espaço como Ibiza, cercado de água, que há décadas foi assumido por um clima de “vale tudo” que coexiste com a vida diária dos habitantes da ilha e que, em muitos casos, os tornou escravos daquela maquinária que move grande parte da economia local. Sem dúvida, a beleza da ilha a transforma em um lugar particularmente agradável, mas talvez aqueles muros da prisão a que Elmyr de Hory se referiu acabaram sendo expandidos para confundir com o litoral e dificultar a saída desse paraíso artificial.

por ANGEL CALVO ULLOA

A dissipação de uma disciplina

A pintura traz com ela mesma uma sobrecarga em seus ombros. Carregou séculos e séculos de história durante todo esse tempo e acumulou nomes de peso na memória. Depois da precisão iluminista de Sanzio, da dramaticidade questionadora de Caravaggio, da subjetividade traduzida em luz e bruma de Turner ou do achatamento espacial de Cézanne, nos resta ainda alguma via de diálogo original com a pintura na situação contemporânea? Se ela assumiu o posto de disciplina soberana da história da arte, sendo linguagem protagonista perante as demais, como lidar com essa técnica e toda sua tradição nos dias de hoje?

Rafael Alonso, artista do Rio de Janeiro presente no Frestas, nos aponta alguns caminhos. Faz uso dos mesmos códigos – da tinta, da cor, da mancha e do suporte –, mas os repensa a partir dos atributos e das premissas que regem nosso tempo. A gama cromática se reconfigura e incorpora novos pigmentos; o suporte também é repensado e assume bases e formatos variados. Ao subverter o canvas, apostando em materiais plurais e corriqueiros, amplia-se o léxico da própria pintura.

Mas sua produção prevê não apenas uma reordenação do vocabulário pictórico, como também sugere uma consciência de contágio entre a técnica e o seu contexto. Um observador das visualidades atuais, o artista coleta fragmentos do nosso imaginário coletivo e os reorganiza a partir de um atencioso exercício de relação entre objeto e espaço. Muito além da peça isolada disposta na parede, seu trabalho ativa um campo de interlocução e de negociação entre as partes – entre todo o conjunto de quadros reunidos no espaço expositivo.

Essa diagramação de recortes permite uma aproximação com a imagem em si, mas permite ainda mais uma problematização do vínculo que se estabelece entre imagem e a circunstância na qual ela está inserida. Quem entrar na exposição e chegar até o trabalho de Rafael poderá acessar o universo da pintura. Acessará também estratégias possíveis de edição de uma realidade.



Rafael Alonso, Sexto mundialito de maiô artístico, 2017 técnica mista

Escrito por:

Paola Fabres

7 Obras Capitais

Pecado
2. p. ext. desobediência a qualquer norma ou preceito;


A quebra de paradigmas, o questionamento sobre pré-conceitos ou sobre a concepção de incômodos que se estabelecem a partir do olhar normativo são fatores que podemos encontrar em algumas das obras citadas logo adiante. Seria uma coincidência pensar que esses trabalhos colocam em xeque noções impostas pela sociedade ou até pela própria igreja? Poderíamos aproximá-las do que conhecemos como pecados capitais? Neste momento, sem nenhuma contrição, buscarei tal qual São Tomás de Aquino, propor algumas associações.

Ira

Foto: Iuri Fioravante

Sem título 2 / Sem título 4 / Sem título 5 | Yara Pina (Goiânia, 1979)


Considerada pela Bíblia um dos pecados que mais desperta o pior em nós, a ira, o descontrole, a impaciência, o rancor e a intolerância, infelizmente estão cada vez mais expostos na nossa sociedade. Ao trazer isso à suas instalações, Yara Pina nos dá a sensação de que algo violento aconteceu por ali recentemente. Objetos carbonizados arremessados contra parede, golpes de facão, tudo é criado a partir da ação performativa que deixa resíduos e evidências inerentes de um ser humano provocado, encurralado e sem controle. Mais do que uma cena de impetuosidade, pode ser interessante perceber que o corpo em fúria que figura esse espaço, está também constituindo traços e marcas que representam ele mesmo.



Avareza

Foto: Danilo Silva

Rede de artistas de diversas regiões do Brasil.

Propinas, troca de favores, tráfico de influências, são algumas das transgressões cometidas por avarentos. O que leva um político ou representante do seu povo a cometer crimes em benefício próprio? Apego a bens materiais, ganância, são pecados condenáveis pela Igreja e pela sociedade em geral. Uma rede de artistas de todo Brasil evidencia narrativas que vem sendo encobertas há mais tempo, lembrando-nos que a conduta de figuras relacionadas a governabilidade de um Estado deve ser um tema público. Nesse caso, a ideia de avareza apresenta-se como temática e não como recurso para a construção da obra. No Frestas, O Nome do Boi também terá oficinas gráficas, encontros e procissões pelas ruas da cidade.

Preguiça

Foto: Iuri Fioravante

Passa Logo | Daniel Lie (São Paulo, 1988)

Na vida corrida em que vivemos, indo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, nossa temporalidade vem sendo comprimida e a pressão pela rapidez, pelo dinamismo e pelo resultado torna-se uma cobrança constante. A preguiça, portanto, cada vez mais é vista como um pecado pela sociedade. Parar e apreciar tornou-se coisa rara, ainda que o fim de nós se aproxime, cada vez mais, a cada segundo.

Na obra Passa Logo, situada na passarela que conecta os dois prédios do Sesc Sorocaba, o artista apresenta uma instalação que remete às estruturas decorativas de pontos comerciais, formada com vegetações que sofrem com a ação do tempo. Ali, o próprio trabalho e a localização onde ele foi inserido nos lembram da pressa que os dias de hoje nos impõem.

Luxúria

Foto: Danilo Silva

Realize Suas Fantasias | Dias & Riedweg (Rio de Janeiro, 1964 e Lucerna, 1955)


O pecado associado ao sexo, ao prazer carnal, ao desejo pelo corpo em si é a luxúria. Correndo o risco da má interpretação, associada meramente ao regojizo ou ao fetiche, a sexualização do corpo tem sido objeto de diversas obras no campo da arte. Em Waiting for my Model (Esperando meu modelo), Dias e Riedweg apresentam uma videoinstalação sobre o trabalho de Charles Hovland que, durante cerca de 20 anos, tirou fotos dos desejos e das fantasias mais secretas de homens, mulheres e transexuais. Ao criar uma tipologia de desejos alheios, quase como uma categorização de fetiches coletados pela cidade, podemos inferir que a luxúria – ou o pecado -, a partir da obra de Dias e Riedweg, é mais recorrente do que pensamos e possivelmente constituinte no imaginário coletivo e nas subjetividades pessoais.


Gula

Foto: Iuri Fioravante

Gordura Trans | Miro Spinelli (Nova Friburgo, 1990)

Na época do Antigo Testamento, o excesso de peso era visto como abundância e êxito pessoal. Mas com o passar do tempo, a glutonaria começa a ser encarada como pecado, pois como todo excesso, passa a ser visto como vício. Agora imagine um corpo acima do peso, sem uma identidade de gênero convencional ou demarcada e totalmente nu. Ao se expor de forma descoberta enquanto se besunta, Miro Spinelli atrai olhares de todos os tipos: desde os curiosos e admirados, até os inconformados. Todavia, mais importante que isso, nos faz questionar o motivo de tentarmos definir o ser humano a partir de categorias binárias e estereotipadas. Miro se reveste da própria matéria que configura sua exclusão. Evidencia, através da gordura que manipula e do corpo que expõe, o motivo saliente dos preconceitos conformados socialmente.


Inveja

Foto: Iuri Fioravante

Donde Nada Ocurre | Irene de Andrés (Ibiza, 1986)

Andando lado a lado com a soberba e avareza, a inveja é, talvez, o mais corriqueiro dos pecados. Desejar a fartura do próximo, não é apenas uma conduta própria do indivíduo, mas também de coletivos ou localidades. Qual é o melhor destino? Quem atrai mais turistas ou quem tem a melhor configuração econômica? Podemos perceber a competitividade entre centros e cidades que sofrem processos de espetacularização e visam propor a melhor oferta para seus viajantes ou visitantes. Mas vale lembrar que, em muitos casos, essa construção do espetáculo acaba gerando o esvaziamento da identidade do local. Na obra Donde Nada Ocurre, Irene de Andrés investiga o processo de decadência de cinco discotecas abandonadas em sua cidade natal, Ibiza, e os efeitos a longo prazo desta perda de identidade que busca a adequação aos desejos hedonísticos da vida turística.

Soberba

Foto: Matheus José Maria/CPA

Público | Celina Portella (Rio de Janeiro, 1977)

Por fim, temos aquele que é considerado a raiz de todos os pecados, a soberba. Todos temos dentro de nós alguma parcela de orgulho e o desejo pela visibilidade, fato que podemos perceber através do número crescente de celebridades instantâneas, que muitas vezes desaparecem da mídia tão rapidamente quanto surgem. Seria a fama a melhor forma de reconhecimento? O impacto que a admiração e a congratulação pode causar no ser humano pode ser sentido se você ficar alguns minutos junto à obra de Celina Portella. Salvas e aclamações disparadas para o próprio espectador que torna-se, ele mesmo, protagonista da obra. Dificilmente verá uma pessoa que não saia com um sorriso envaidecido depois de voltar daquele corredor escuro.

Mas podem ficar tranquilos, aqui ninguém será julgado ou condenado. Venham visitar todas as obras!

Escrito por:

Danilo Silva

Gordura Transforma

Começou. E lá está o ser humano no seu estado mais primitivo. Nu. Estão ali também cinco tonéis de metal azul cheios de banha. O sebo bovino, que se usa pra fazer sabão, endureceu dentro do recipiente e precisa ser remexido e arremessado ao chão. Corpos tatuados, lisos, peludos, femininos e masculinos se misturam ao material revirado. O gênero dessas quatro pessoas que vejo não me parece importante. São pessoas.

O piso fica escorregadio e os movimentos lentos precisam ser mais fortes e precisos. Gordura treme.

Fico com vontade de me aproximar e oferecer ajuda quando vejo que todos param ofegantes. Já existe cansaço em seus olhares. Vão se formando pequenos montes de sebo pelo chão. Ouço diversas pessoas dizendo que o cheiro da banha é insuportável. Gordura incomoda.

O artista, Miro, se inclina sobre os tonéis. Talvez mais fácil do que tirar a banha de dentro, seja esfregar o corpo diretamente nela. Senta e respira fundo. Gordura cansa.

Os corpos estão cobertos de suor. Gordura frustra.

Por maior que seja o esforço de todos, parece que a banha não quer sair. Quem sabe se deitarem? Um a um, os barris cheios vão sendo virados para o chão. Gordura pesa.

Sentados, agora eles tentam pisar no sebo endurecido. Aos poucos o material se solta e cai ao redor deles. Gordura esparrama.

O cheiro ainda incomoda algumas pessoas. Gordura afasta.

A tensão se dissipa entre eles, as pessoas ao redor não importam. Estão todos confortáveis no meio de toda aquela bagunça. Alguém pisoteia a gordura enquanto um corpo balançava no chão, eles riem. Rio eu também. Gordura também é leve.

Gordura Trans de Miro Spinelli é um projeto seriado em três partes. Este texto descreve a primeira ação intitulada gordura trans, apresentada em Frestas em 11/08.  

Escrito por:

Juliana Ramos

Ações e Extinções

Jardim Botânico de Sorocaba, Brasil.
A arte pode colocar a natureza em risco?
A ironia acontece todos os dias. Imburana, espécie de árvore em extinção, vem sendo transformada em objetos artísticos e artesanais como carrancas, esculturas, imagens de santos e matrizes para xilogravuras. Turistas encantados e, talvez também desavisados, acabam colaborando com um processo de degradação do meio ambiente.
Seu tronco é especialmente procurado pelas abelhas que criam suas colmeias na parte interna das árvores. Com a derrubada ilegal, todo o ecossistema do sertão do Brasil, da América do Sul (do Peru à Argentina) e especialmente do sudoeste da Floresta Amazônica, acaba prejudicado.
De posse desta informação, a preocupação também passou a ser dos apicultores, pesquisadores e artesãos, que acreditam que o tombamento seria uma solução para inibir a derrubada.
Edson Barros, artista participante da segunda edição do Frestas, também faz uso da Imburana na constituição de seus trabalhos. Talvez você esteja se perguntando porque uma Trienal de Artes possibilita interferências em locais onde menos deveríamos intervir: na natureza em seu estado pleno. Mas aqui, no Jardim Botânico da cidade de Sorocaba, local escolhido por Edson, a ação proposta é diferente. Ao invés de corroborar a extinção, o plantio da árvore vira proposição de obra de arte, garantindo, pelo menos aqui, sua permanência por mais tempo. Obra viva, em constante crescimento, literalmente. Trata-se, então, do caminho inverso: da arte sendo devolvida à natureza.


“É importante aproximar a arte das questões ambientais, tornar o problema visual. Apontar para além, mostrar essas obras faraônicas que degradam o ambiente e a falta de política ambiental.”

Edson Barrus

No momento em que o ato de plantar uma muda, em meio a uma trienal, passa a ser um ato de provocação sobre o debate, lembramo-nos que a arte, por vezes, cumpre o papel de lançar questões e de germinar consciências.

Escrito por:

Danilo Silva

Sobre uma Beleza em Construção

A imagem do corpo obeso ainda ofende.

Na grande briga de foices que são os comentários da internet há ódio para tudo, é verdade. E o gordofóbico está lá, fazendo questão de dedicar seu tempo e vocabulário para difamar gratuitamente os outros. Assim como outros fóbicos.

Pois bem, vamos adotar uma empatia que esses indivíduos não costumam ter e voltarmos nossos olhos para seus preconceitos.


Feios, Sujos e Malvados


A construção do padrão de beleza da sociedade ocidental está fundada em ideais estéticos europeus. A história, e principalmente a história da arte, nos mostra as transformações desse padrão de diversas maneiras, numa equação envolvendo simetria, equilíbrio e proporção.

O tanquinho do Lançador de Discos. Cópia romana datando do séc. II AC.

A beleza na Grécia Antiga estava nos corpos esbeltos, sem adjacências que atrapalhassem as tarefas comuns, como praticar ginástica ou ir a guerra. Estes desvios no padrão estético do indivíduo desarmonizavam toda a sociedade e se tornavam motivos de ódio (qualquer semelhança com o nazismo não é mera coincidência). A beleza feminina, por sua vez, era idealizada a partir de atributos utilitários, em representações que evocavam a sexualidade e a fertilidade.

Com o tempo e o progresso, a equação perdeu seu balanço até deixar de fazer sentido obrigatório.

Então, qual o mecanismo pra gerar ódio pelo formato do corpo do outro?


Belos, Recatados e Ignorantes


Podemos avaliar alguns fatores:

01) Um formato de educação sustentado por esse ideal excludente da beleza (neoclássico e/ou conservador) que cria um olhar menos curioso pelo diverso, exigindo um padrão de excelência técnica que representa uma fração pequena das possibilidades da arte no séc. XXI.

02) O mercado, através da publicidade, que abastece um imaginário calcado nesta mesma lógica, comumente distorcidas por pesquisas de desenvolvimento de marca. O desejo pela experiência do consumo é construído sobre corpos que pouco representam a diversidade que podemos encontrar na vida em sociedade. Aos poucos a publicidade esboça um olhar mais diverso, guiada pelas tendências de mercado.

03) A ignorância, que se dá a partir de dois movimentos de alienação. Alienação configurada por meio do afastamento deste mesmo indivíduo ignorante, que opta por isolar-se de tudo que foge ao normativo; e por meio da própria internet que oferece justificativas para esta ignorância, por conduzir este indivíduo junto a outros que pensam como ele.

E qual a alternativa para dialogar com esse olhar?


Gordos, Transexuais e Radicais


Gordura Trans – Miro Spinelli

É comum que a arte se adiante e introduza ideias e discursos no seio da sociedade, geralmente através da prática, geralmente de forma polêmica. Condutas engessadas no início do séc. XX foram questionadas pelos modernistas, que distorciam a representação da imagem perfeita, ainda hoje são motivo de discussão, tanto na esfera estética quanto no campo comportamental.

A performance Gordura Trans do artista transexual Miro Spinelli, foi alvo de comentários preconceituosos em redes sociais e sua imagem foi viralizada de maneira caricata e ofensiva. O trabalho de Miro explora a subjetividade de seu corpo não binário e gordo para afirmar um corpo não hegemônico. Esta mesma performance acontece na Trienal de Artes Frestas, no Sesc Sorocaba, no dia 12/08.

A possibilidade de abrigar este tipo de produção, dar voz ao discurso omitido e iluminar as possíveis representações destas minorias é um caminho para esse processo de desenvolvimento cultural e social. Outra face disso está na própria arte. É preciso fazê-la, discuti-la, repensá-la, discuti-la novamente e assim por diante. Até o momento em que o corpo possa ser da maneira que ele deseje ser e estar.

O tempo do apedrejamento não precisa retornar.

Escrito por:

Wagner Linares

Frestas na internet

Foto: reprodução Instagram Bruno Mendonça

Há 20 anos usava-se muito a expressão “entrar na internet”. Como se fosse possível abrir uma porta e de alguma forma chegar a este espaço novo e cheio de infinitas possibilidades. O “mundo virtual” era um lugar a parte, de onde entrávamos e saíamos acompanhados de um característico som da conexão analógica.

O mundo mudou. O espaço virtual se expandiu e tomou conta de nossos hábitos diários desde o momento em que acordamos. A conexão é permanente, constante, infinita. Não há divisão de territórios e estamos todos presentes no mesmo lugar, conectados a tudo e todos, 24 horas por dia.

Desta forma, nada mais natural que a Trienal ocupe também este espaço como uma extensão da própria mostra. Com curadoria de Ana Maria Maia e Júlia Ayerbe, um grupo de artistas foi convidado para interferir em diferentes plataformas digitais. Listamos aqui o caminho a seguir para acompanhar Frestas na internet sem se perder.

A argentina Gala Berger, questionando sobre a credibilidade dos conteúdos webs, apresenta o projeto de escrita e monitoramento de um verbete na Wikipedia, enciclopédia multilíngue colaborativa. Escrito em castelhano e passível de interferência dos públicos, a obra está no ar desde 11 de julho.

Angélica Freitas ocupa a rede social que mais abriga conteúdo no mundo, o Facebook. Em postagens pontuais, sonorizadas por Juliana Perdigão, um episódio da política brasileira é abordado através de analogias com o cotidiano num encontro entre poesia e música, despertando sensações que transbordam do virtual.

O Departamento de reclamações das Guerrilla Girls abre espaço na web para o recolhimento de queixas das pessoas que não poderão visitar a exposição presente no Sesc Sorocaba. Além de expressar suas objeções, o público pode compartilhar o link, aumentando assim o alcance do trabalho.

Bruno Mendonça cria o projeto onde está o que se o que está em porque que consiste em intervenções em circuitos variados que tangenciam a exposição, criando uma rede discursiva, uma espécie de narrativa hipertextual. Desde agosto de 2017, o artista tem desenvolvido conteúdos específicos nas redes sociais, sempre indexados com a hashtag #frestas2017, a mais popular entre os visitantes da trienal. Esses conteúdos infiltram uma perspectiva pessoal e desviante na memória coletiva e institucional do evento. Em 21/10 o artista realiza uma performance com formato que transita entre o spoken word, a lecture performance e o one man band show, na ágora do Sesc Sorocaba onde visitará este conteúdo em processo complexificando essa rede e as relações entre performance e performatividade.

Em Escola da Floresta, Fábio Tremonte ocupará o Facebook  ao vivo de 28/8 a 1/9, através de uma transmissão da leitura do Relatório Figueiredo, um documento de 7 mil páginas produzido em 1967 pelo procurador Jader de Figueiredo Correia a pedido do ministro do interior brasileiro Afonso Augusto de Albuquerque Lima. O texto descreve violências praticadas por latifundiários e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio contra índios brasileiros ao longo das décadas de 1940, 1950 e 1960.

A partir de uma residência artística, Ricardo Castro fará ações em espaços públicos da cidade de Sorocaba que serão registradas em fotos e vídeos e publicadas no Google Maps, associadas aos locais onde aconteceram. Em suas redes sociais o artista irá revelar fragmentos dos registros destas intervenções.

Em performance que ocorre em 12/8 e 21/10 no auditório do Sesc Sorocaba, Deyson Gilbert apresenta uma aula em formato TED (Tecnologia, Entretenimento e Design), usando recursos como microfone, slides e envio de arquivos para um grupo de Whatsapp com as pessoas da plateia, com disseminação simultânea e posterior nas redes sociais.

Escrito por:

Juliana Ramos