Na conferência de abertura do Frestas – Trienal de Artes de Sorocaba, Peter Pál Pelbart fez uma fala intitulada Sobre Interstícios, criação e resistência. Fala cuja primeira parte – que ele mesmo assume apocalíptica – segue neste texto, se não citada ou transcrita inteiramente, parafraseada por mim.

“Estamos em guerra. Guerra contra os pobres, contra os negros, contra as mulheres, contra os indígenas, contra os transexuais, contra os craqueiros, contra a esquerda, contra a cultura, contra a informação, contra o Brasil. A guerra é econômica, política, jurídica, militar, midiática. É uma guerra aberta, embora denegada. É uma guerra total, embora camuflada. É uma guerra sem trégua e sem regra. Ilimitada, embora queiram nos fazer acreditar que tudo está sob a mais estrita e pacífica normalidade institucional, social, jurídica, econômica.”

Peter Pál Pelbart

Uma operação abafa é realizada em escala nacional e um governo esquizofrênico parece querer instaurar sua lógica, onde guerra e paz se tornam sinônimos, assim como exceção e normalidade, golpe e governabilidade, neoliberalismo e guerra civil. O que só é possível através de uma corrosão da palavra e um descrédito do discurso.

“É preciso dar nome aos bois. O nome disso é guerra civil.”

Peter Pál Pelbartem referêcia a rede de artista chamada O Nome do Boi

A lógica do capitalismo atual é necessariamente bélica como descreve o livro recentemente lançado na França, Guerres et capital, por Éric Alliez e Maurizio Lazzarato, citado por Peter:

“O capitalismo e o liberalismo trazem a guerra na barriga como as nuvens trazem a tempestade. Se a financeirização do fim do século 19 e do começo do 20 conduziu à guerra total e à Revolução Russa, à crise de 1929 e às guerras civis europeias, a financeirização contemporânea nos leva à guerra civil global reconfigurando todas as suas polarizações.”

Éric Alliez e Maurizio Lazzarato No livro Guerres et capital. Ed. Amsterdam. Paris: 2016

Já não se trata de uma guerra entre Estados-Nação pela conquista de terras supostamente inabitadas. Nem de uma guerra visando extrair matérias-primas ou disputando mercados, mas trata-se de uma guerra contra a própria população, uma guerra de classes, de raças, de sexos, uma guerra de subjetividades, visando manter e aprofundar as clivagens que atravessam nossa sociedade. Essa guerra se dá na própria metrópole, uma espécie de endocolonialismo em escala global. É ao mesmo tempo, e de maneira indiscernível, militar e não militar.

Disso emerge em Peter questões, que embora ainda sejam para ele embrionárias, compartilha generosamente:

Como enfrentar uma guerra, sem necessariamente aceitar a belicosidade que dela emana?

Como combater o adversário sem espelha-lo?

Trata-se de tomar o poder ou de expandir a potência?

Seria o caso de tentar ocupar novamente o lugar daqueles que tomaram de assalto o Estado? Ou antes, ocupar ruas, praças, escolas, instituições, espaços públicos privatizados, experimentar novas formas de organização, de auto organização, de sociabilidade, de subjetivação?

Como experimentar novas modalidades já não de ocupação, mas de despossessão, de deserção, de destituição, de dissidência, de esquiva, de dessubjetivação? Não será essa a combinação mais paradoxal e a mais urgente?

Como em Aos Nossos Amigos, trata-se não de assumir o governo, mas de não deixar-se governar e não querer governar os demais. Como sair desse paradigma? Como fazê-lo sem entrar no jogo, do qual já saímos vencidos de antemão, porque fomos impregnados pela lógica do adversário, dos seus aparelhamentos?

Falta-nos operadores de desativação, modos de tornar inoperante um poder, como diz Agamben. Como desativar aquilo a que nos opomos, sem nessa oposição reativar esse adversário?

Mas também, como desativar em nós mesmos algo enredado nos mecanismos vigentes? O Estado em nós, o fascista em nós, o boi em nós?

Escrito por:

Michelle Magrini (parafraseando Peter Pál Pelbart)