Entrevista com Guerrilla Girls

 

Esta entrevista foi realizada originalmente em inglês, no dia 23 de setembro de 2017, no espaço expositivo do Frestas em Sorocaba, captada por Michelle Magrini e traduzida para o português por Paola Fabres.

 

Paola Fabres: Em primeiro lugar, muito obrigada pela presença de vocês e pelo tempo dedicado a essa nossa conversa. Estamos aqui junto ao Departamento de Reclamações e queremos aproveitar para debater um pouco sobre o coletivo e sobre a participação das Guerrilla Girls aqui no Frestas. O grupo de vocês está ativo há mais de 30 anos. O que vocês assinalam como mudanças importantes que ocorreram desde então? Em termos de feminismo no campo das artes, quais condições vocês acreditam que tem melhorado e quais continuam estagnadas?

Guerrilla [Frida]: Bem, quando nós começamos em 1985 muitos curadores, críticos e galeristas de fato acreditavam que mulheres e artistas negras não faziam arte de qualidade. Eles tinham seus próprios juízos de valores que excluíam esses grupos. Eu acho que como resultado à nossa pressão e à pressão de muitos outros grupos, o sistema começa a se dar conta de que é impossível escrever a história da arte sem as vozes de mulheres e artistas de outras culturas. Essa é a parte boa de tudo isso. Mas a parte que não mudou é que temos até hoje muitas situações de toquenismo, ou seja, quando uma galeria ou uma instituição começa a trazer a presença de uma mulher, ou de uma artista lésbica, ou de um artista gay, ou de um artista queer e pensa que a situação está resolvida. O que nós acreditamos é que o toquenismo é parte do problema. Existe ainda um grande caminho a ser percorrido, para artistas mulheres ou negras, por exemplo, em termos de dinheiro, em termos de recompensa, em termos de valorização e oportunidade, porque sabemos que a grande parte do dinheiro envolvido no mercado ainda vai para o homem branco. Nós precisamos igualar muitas dessas questões. Então, infelizmente, ainda nos debatemos com essas realidades de desigualdade no mundo das artes nos dias de hoje.

Paola Fabres: Em grande parte do trabalho de vocês podemos perceber esses sintomas do sistema das artes. Eu gostaria de falar sobre estratégias. Vocês poderiam mencionar possíveis métodos para conscientização e para a conquista de direitos de gênero ou etnia? Vocês acham que as instituições de arte deveriam atuar a partir de um sistema de cotas?

Guerrilla [Kathe]: Nós nunca acreditamos no sistema de cotas, mas, sim, nós achamos que a situação ainda tem muito a melhorar. Em termos de estratégias, o que nós fizemos, desde a primeira vez que nós transitamos por Nova York levando nossos cartazes e nossas mensagens, foi buscar uma possibilidade de mudar o jogo sem necessariamente usar os métodos tradicionais. Então, buscamos alternativas mais diretas e que qualquer outra pessoa pudesse fazer por ela mesma. Trouxemos informações que as pessoas ainda desconheciam, usando fatos verídicos, usando humor e artifícios visuais que pudessem atingir a mente das pessoas. Nós nunca buscamos um diálogo apenas com quem já conversa conosco, já concorda ou já reconhece muitas das questões que nós trazemos à tona, mas com um público muito mais variado do que esse. Um exemplo é quando colocamos um pôster de uma mulher nua no Metropolitan Museum, que trouxe dados importantes para todo o público que frequentava aquela exposição. O primeiro dado é que praticamente não havia mulheres artistas naquele acervo e, em segundo lugar, que 76% dos nus ali presentes eram femininos, o que nos assinalava que as mulheres eram valiosas por seu corpo, mas não por seu trabalho. Então, o pôster começou a se tornar uma estratégia de conscientização. Acreditamos que muitas pessoas que viram esse material entrarão futuramente em museus pensando sobre essas questões, sobre as coleções guardadas nesses espaços. Pensarão sobre quem são esses artistas e sobre as imagens que eles trazem.

Paola Fabres: Bom, vocês estão novamente no Brasil. Agora participando do Frestas, Trienal das Artes do Sesc Sorocaba e acabam de abrir a exposição no MASP. Quais particularidades vocês notaram no nosso sistema e nas nossas instituições artísticas no contexto brasileiro? Tem alguma estatística ou característica que chamou a atenção de vocês?

Guerrilla [Frida]: Então, nós fizemos essa mesma contagem de nudez no acervo do MASP e descobrimos que 6% dos artistas são mulheres e que 60% dos nus são de modelos femininas. Ou seja, se compararmos com os números levantados no Metropolitan Museum, o Museu de Arte de São Paulo traz um número um pouco maior de mulheres artistas. Muito pouco, porém maior. Mas o que mais chama a atenção é que no MASP temos um número muito maior de nudez masculina. Isso foi um fato interessante de se perceber. Já sobre a configuração das instituições no país, uma consideração pessoal nossa à respeito, é que acreditamos que grande parte dos museus de vocês é muito parecida com as nossas instituições de arte nos Estados Unidos, nas quais as coleções em geral são brancas e masculinas. Por outro lado, vocês tem esse outro perfil de instituição, como o Sesc, por exemplo, que é populista, popular e acessível. Nós achamos que isso é um possível formato a ser pensado e replicado nos anos futuros e que isso é algo muito significativo para pensarmos a respeito e para avaliarmos maneiras de capitalização da arte. A missão que se percebe aqui é bastante diferente de outros espaços, já que a cultura em si e a reverberação dessa cultura torna-se o objetivo principal.

Paola Fabres: O que vocês apontam como potência no Departamento de Reclamações? Vocês pretendem organizar essa informação coletada de alguma maneira?

Guerrilla [Kathe]: Estamos levando esse Departamento ao redor do mundo. Ele já esteve em Londres, na Tate, agora está aqui. Nós queremos dar a chance para as pessoas fazerem da sua própria maneira, para se tornarem propositivas e trazerem suas reclamações. O surgimento da ideia parte do fato de nós sermos sempre criticadas: “nossa, como vocês reclamam, vocês apenas reclamam o tempo inteiro”. Nós pensamos a respeito e nos demos conta que, de fato, adoramos fazer isso. Claro que não consideramos que sejam reclamações quaisquer, mas reclamações criativas. De qualquer forma, são reclamações no final das contas. Acho que essa é a principal questão. Nós recolhemos esse material, registramos e levamos ele conosco, mas não temos uma previsão ou projeto de formatação ou organização, por enquanto.

Paola Fabres: Vocês defendem práticas que questionam privilégios culturais. A América do Norte e o próprio idioma inglês apresentam-se como marcas hegemônicas nos países da América Latina e ao redor do mundo. Vocês estão agora no Brasil, em Sorocaba, distante dos grandes circuitos e, no entanto, não foram traduzidos todos os trabalhos aqui na exposição para o português. Eu gostaria de saber se tem algum motivo e também se vocês podem comentar sobre como a barreira da linguagem pode afetar o próprio trabalho em si.

Guerrilla [Kathe]: Mas cada um deles está com tradução nas legendas, você pode ver nas fichas técnicas. Nós sempre gostamos de traduzir, mas é importante comentar também que tem dois trabalhos específicos aqui na exposição que são bem mais complicados, já que tem muito texto, expressões específicas e detalhes visuais que dificultam esse processo…

Guerrilla [Frida]: Nós somos um grupo pequeno. Menor do que a maioria das pessoas imagina. E somos artistas. Não somos diplomatas ou linguistas e nós pedimos desculpas por não termos uma proficiência. Até temos alguma familiaridade com alguns idiomas não ocidentais e latinos, mas não com o português. Nós realmente pedimos desculpas por isso. Nós tivemos essa preocupação agora com a exposição do MASP, onde todos os trabalhos foram traduzidos para o português no catálogo. No caso do Frestas isso não foi possível. É mais uma questão de tempo, dinheiro, praticidade. É muito mais uma questão técnica do que uma falta de interesse nosso nas traduções das obras e das mensagens que estão aqui na exposição. Nós acabamos usando o inglês, nos apoiando em linguagens mais universais e que mais pessoas falam, e isso é um problema. Acho que depois dessa viagem talvez seja possível que a gente mude isso e expanda nossa produção nesse sentido.

Guerrilla [Kathe]: Mas já fizemos muitas traduções, para o espanhol, para o polonês, para o italiano, para o chinês, entre tantas outras. Claro que trabalhamos também com o inglês, uma vez que esse é o idioma que nós melhor conhecemos. Existe também uma dificuldade na tradução de gírias, já que grande parte do nosso trabalho parte do humor. Então, às vezes, dependemos desse entendimento do inglês para que o humor seja percebido.

Paola Fabres: Em um dos vídeos presentes aqui no Frestas, vocês dizem que o objetivo de vocês é “criar problemas”. Qual a grande vontade de vocês quando vocês querem “criar problemas”?

Guerrilla [Kathe]: Bom, nosso intuito é bem esse: trazer problemas à tona, manifestar e problematizar os direitos humanos que circudam o mundo das artes, para criar conscientização no público, tanto para o deleite da própria obra como para despertar as pessoas que vêm nosso trabalho para que o percebam como um dispositivo capaz de levá-las a criar suas próprias formas de ativismo. É claro que muitas pessoas já fazem isso, mas estamos sempre querendo que mais pessoas se “convertam”. Acho que é isso que queremos. Queremos mais “convertidos”.