WEBDOC | Como surgem as Frestas?
O trabalho da curadoria na trienal:
O trabalho da curadoria na trienal:
Pecado
2. p. ext. desobediência a qualquer norma ou preceito;
A quebra de paradigmas, o questionamento sobre pré-conceitos ou sobre a concepção de incômodos que se estabelecem a partir do olhar normativo são fatores que podemos encontrar em algumas das obras citadas logo adiante. Seria uma coincidência pensar que esses trabalhos colocam em xeque noções impostas pela sociedade ou até pela própria igreja? Poderíamos aproximá-las do que conhecemos como pecados capitais? Neste momento, sem nenhuma contrição, buscarei tal qual São Tomás de Aquino, propor algumas associações.
Ira
Foto: Iuri Fioravante
Sem título 2 / Sem título 4 / Sem título 5 | Yara Pina (Goiânia, 1979)
Considerada pela Bíblia um dos pecados que mais desperta o pior em nós, a ira, o descontrole, a impaciência, o rancor e a intolerância, infelizmente estão cada vez mais expostos na nossa sociedade. Ao trazer isso à suas instalações, Yara Pina nos dá a sensação de que algo violento aconteceu por ali recentemente. Objetos carbonizados arremessados contra parede, golpes de facão, tudo é criado a partir da ação performativa que deixa resíduos e evidências inerentes de um ser humano provocado, encurralado e sem controle. Mais do que uma cena de impetuosidade, pode ser interessante perceber que o corpo em fúria que figura esse espaço, está também constituindo traços e marcas que representam ele mesmo.
Avareza
Foto: Danilo Silva
Rede de artistas de diversas regiões do Brasil.
Propinas, troca de favores, tráfico de influências, são algumas das transgressões cometidas por avarentos. O que leva um político ou representante do seu povo a cometer crimes em benefício próprio? Apego a bens materiais, ganância, são pecados condenáveis pela Igreja e pela sociedade em geral. Uma rede de artistas de todo Brasil evidencia narrativas que vem sendo encobertas há mais tempo, lembrando-nos que a conduta de figuras relacionadas a governabilidade de um Estado deve ser um tema público. Nesse caso, a ideia de avareza apresenta-se como temática e não como recurso para a construção da obra. No Frestas, O Nome do Boi também terá oficinas gráficas, encontros e procissões pelas ruas da cidade.
Preguiça
Foto: Iuri Fioravante
Passa Logo | Daniel Lie (São Paulo, 1988)
Na vida corrida em que vivemos, indo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, nossa temporalidade vem sendo comprimida e a pressão pela rapidez, pelo dinamismo e pelo resultado torna-se uma cobrança constante. A preguiça, portanto, cada vez mais é vista como um pecado pela sociedade. Parar e apreciar tornou-se coisa rara, ainda que o fim de nós se aproxime, cada vez mais, a cada segundo.
Na obra Passa Logo, situada na passarela que conecta os dois prédios do Sesc Sorocaba, o artista apresenta uma instalação que remete às estruturas decorativas de pontos comerciais, formada com vegetações que sofrem com a ação do tempo. Ali, o próprio trabalho e a localização onde ele foi inserido nos lembram da pressa que os dias de hoje nos impõem.
Luxúria
Foto: Danilo Silva
Realize Suas Fantasias | Dias & Riedweg (Rio de Janeiro, 1964 e Lucerna, 1955)
O pecado associado ao sexo, ao prazer carnal, ao desejo pelo corpo em si é a luxúria. Correndo o risco da má interpretação, associada meramente ao regojizo ou ao fetiche, a sexualização do corpo tem sido objeto de diversas obras no campo da arte. Em Waiting for my Model (Esperando meu modelo), Dias e Riedweg apresentam uma videoinstalação sobre o trabalho de Charles Hovland que, durante cerca de 20 anos, tirou fotos dos desejos e das fantasias mais secretas de homens, mulheres e transexuais. Ao criar uma tipologia de desejos alheios, quase como uma categorização de fetiches coletados pela cidade, podemos inferir que a luxúria – ou o pecado -, a partir da obra de Dias e Riedweg, é mais recorrente do que pensamos e possivelmente constituinte no imaginário coletivo e nas subjetividades pessoais.
Gula
Foto: Iuri Fioravante
Gordura Trans | Miro Spinelli (Nova Friburgo, 1990)
Na época do Antigo Testamento, o excesso de peso era visto como abundância e êxito pessoal. Mas com o passar do tempo, a glutonaria começa a ser encarada como pecado, pois como todo excesso, passa a ser visto como vício. Agora imagine um corpo acima do peso, sem uma identidade de gênero convencional ou demarcada e totalmente nu. Ao se expor de forma descoberta enquanto se besunta, Miro Spinelli atrai olhares de todos os tipos: desde os curiosos e admirados, até os inconformados. Todavia, mais importante que isso, nos faz questionar o motivo de tentarmos definir o ser humano a partir de categorias binárias e estereotipadas. Miro se reveste da própria matéria que configura sua exclusão. Evidencia, através da gordura que manipula e do corpo que expõe, o motivo saliente dos preconceitos conformados socialmente.
Inveja
Foto: Iuri Fioravante
Donde Nada Ocurre | Irene de Andrés (Ibiza, 1986)
Andando lado a lado com a soberba e avareza, a inveja é, talvez, o mais corriqueiro dos pecados. Desejar a fartura do próximo, não é apenas uma conduta própria do indivíduo, mas também de coletivos ou localidades. Qual é o melhor destino? Quem atrai mais turistas ou quem tem a melhor configuração econômica? Podemos perceber a competitividade entre centros e cidades que sofrem processos de espetacularização e visam propor a melhor oferta para seus viajantes ou visitantes. Mas vale lembrar que, em muitos casos, essa construção do espetáculo acaba gerando o esvaziamento da identidade do local. Na obra Donde Nada Ocurre, Irene de Andrés investiga o processo de decadência de cinco discotecas abandonadas em sua cidade natal, Ibiza, e os efeitos a longo prazo desta perda de identidade que busca a adequação aos desejos hedonísticos da vida turística.
Soberba
Foto: Matheus José Maria/CPA
Público | Celina Portella (Rio de Janeiro, 1977)
Por fim, temos aquele que é considerado a raiz de todos os pecados, a soberba. Todos temos dentro de nós alguma parcela de orgulho e o desejo pela visibilidade, fato que podemos perceber através do número crescente de celebridades instantâneas, que muitas vezes desaparecem da mídia tão rapidamente quanto surgem. Seria a fama a melhor forma de reconhecimento? O impacto que a admiração e a congratulação pode causar no ser humano pode ser sentido se você ficar alguns minutos junto à obra de Celina Portella. Salvas e aclamações disparadas para o próprio espectador que torna-se, ele mesmo, protagonista da obra. Dificilmente verá uma pessoa que não saia com um sorriso envaidecido depois de voltar daquele corredor escuro.
Mas podem ficar tranquilos, aqui ninguém será julgado ou condenado. Venham visitar todas as obras!
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Em matéria publicada em um jornal local de Sorocaba, Rafael RG diz:
“A gente falou de vários assuntos, mas o tema principal foi a resistência. A resistência de fazer o que a gente acredita.”
Durante quase um mês em Sorocaba, o artista Rafael RG, radicado em Belo Horizonte, redigiu um texto poético, baseado em experiências e nas redes de afetos que criou na cidade durante o período de sua residência, iniciada no dia 25 de julho.
No vídeo, o artista fala sobre as suas experiências na cidade, o encontro com a artista Linda Duares e sua rede de afetos, confira:
A obra Ano passado eu morri, mas esse ano não morro, foi apresentada no dia 22/8, no Sesc Sorocaba e o texto será publicado, na íntegra, no catálogo da 2ª edição de Frestas, que será lançado em novembro de 2017.
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Começou. E lá está o ser humano no seu estado mais primitivo. Nu. Estão ali também cinco tonéis de metal azul cheios de banha. O sebo bovino, que se usa pra fazer sabão, endureceu dentro do recipiente e precisa ser remexido e arremessado ao chão. Corpos tatuados, lisos, peludos, femininos e masculinos se misturam ao material revirado. O gênero dessas quatro pessoas que vejo não me parece importante. São pessoas.
O piso fica escorregadio e os movimentos lentos precisam ser mais fortes e precisos. Gordura treme.
Fico com vontade de me aproximar e oferecer ajuda quando vejo que todos param ofegantes. Já existe cansaço em seus olhares. Vão se formando pequenos montes de sebo pelo chão. Ouço diversas pessoas dizendo que o cheiro da banha é insuportável. Gordura incomoda.
O artista, Miro, se inclina sobre os tonéis. Talvez mais fácil do que tirar a banha de dentro, seja esfregar o corpo diretamente nela. Senta e respira fundo. Gordura cansa.
Os corpos estão cobertos de suor. Gordura frustra.
Por maior que seja o esforço de todos, parece que a banha não quer sair. Quem sabe se deitarem? Um a um, os barris cheios vão sendo virados para o chão. Gordura pesa.
Sentados, agora eles tentam pisar no sebo endurecido. Aos poucos o material se solta e cai ao redor deles. Gordura esparrama.
O cheiro ainda incomoda algumas pessoas. Gordura afasta.
A tensão se dissipa entre eles, as pessoas ao redor não importam. Estão todos confortáveis no meio de toda aquela bagunça. Alguém pisoteia a gordura enquanto um corpo balançava no chão, eles riem. Rio eu também. Gordura também é leve.
Gordura Trans de Miro Spinelli é um projeto seriado em três partes. Este texto descreve a primeira ação intitulada gordura trans, apresentada em Frestas em 11/08.
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Hoje faz exatos 2017 anos que os habitantes do planeta Soro vivem pacificamente, todas pessoas do bem e de bem, ótimos hábitos e costumes, quase inertes, nada os tirava do sério.
A não ser aquilo que ocorreu três anos atrás…
“Mas é melhor não falar sobre isso, afinal já faz tempo e hoje estamos protegidos”.
Assim pensavam os nativos daquele planeta centralizado no universo.
Invasores descobriram uma fresta na barreira do passado e uma nova invasão é iminente. Seres estranhos, das mais variadas cores e formas, surgem, irrompendo no dia a dia dos moradores de Soro. Tomam escadarias, pontes, casas e fachadas de prédios.
“É preciso resistir antes que invadam nossas mentes!”, brada um representante qualquer.
Tarde demais, Soro foi invadida e trouxe à tona o maior medo de todos: a reflexão.
O texto acima é inspirado na obra Grão (2016), de Letícia Ramos, que está presente no Frestas – Trienal de Artes que comenta o desequilíbrio de uma colônia humana pós catástrofe.
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Jardim Botânico de Sorocaba, Brasil.
A arte pode colocar a natureza em risco?
A ironia acontece todos os dias. Imburana, espécie de árvore em extinção, vem sendo transformada em objetos artísticos e artesanais como carrancas, esculturas, imagens de santos e matrizes para xilogravuras. Turistas encantados e, talvez também desavisados, acabam colaborando com um processo de degradação do meio ambiente.
Seu tronco é especialmente procurado pelas abelhas que criam suas colmeias na parte interna das árvores. Com a derrubada ilegal, todo o ecossistema do sertão do Brasil, da América do Sul (do Peru à Argentina) e especialmente do sudoeste da Floresta Amazônica, acaba prejudicado.
De posse desta informação, a preocupação também passou a ser dos apicultores, pesquisadores e artesãos, que acreditam que o tombamento seria uma solução para inibir a derrubada.
Edson Barros, artista participante da segunda edição do Frestas, também faz uso da Imburana na constituição de seus trabalhos. Talvez você esteja se perguntando porque uma Trienal de Artes possibilita interferências em locais onde menos deveríamos intervir: na natureza em seu estado pleno. Mas aqui, no Jardim Botânico da cidade de Sorocaba, local escolhido por Edson, a ação proposta é diferente. Ao invés de corroborar a extinção, o plantio da árvore vira proposição de obra de arte, garantindo, pelo menos aqui, sua permanência por mais tempo. Obra viva, em constante crescimento, literalmente. Trata-se, então, do caminho inverso: da arte sendo devolvida à natureza.
No momento em que o ato de plantar uma muda, em meio a uma trienal, passa a ser um ato de provocação sobre o debate, lembramo-nos que a arte, por vezes, cumpre o papel de lançar questões e de germinar consciências.
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